sexta-feira, 29 de abril de 2011

Do Amor

Não amar quando se recebeu do céu uma alma feita para o amor é
privar-se a si mesma e a outrem de uma grande felicidade. (Stendhal)

Retomei a leitura de um tema que já foi o meu favorito: o Amor. Além de busca apaixonada, o sentimento constituía, para mim, um questionamento filosófico sério. Não queria apenas encontrar e viver o amor, mas compreendê-lo. Eram as minhas três grandes questões: a Vida, a Morte e o Amor.
Acho que talvez tenha me concentrado na Vida e acabei deixando o Amor - pelo menos, o amor romântico - de lado. Com o tempo, passou a figurar apenas como mais uma ilusão - talvez a mais bela e prazerosa de todas...
A motivação para a retomada nasceu de uma razão muito prática: a resolução de finalmente ler, de fato, todos os livros que tenho (sabe aquela mania de comprar um monte de livro e sempre adiar a leitura? Pois assumi um compromisso comigo mesma de não adquirir nem mais um volume até dar conta de todos que já possuo, e como muitos na minha estante tratam deste assunto...).
De início, resisti, para não simpatizar tanto com o tema novamente, pelo menos não da maneira quase obsessiva de antigamente. Por outro lado, pensei que seria interessante retomar a questão com um certo distanciamento, procurando compreender o conceito do amor da forma mais objetiva possível. Seria estudar a anatomia do amor por si, e não o amor para mim. Mal tem início a empreitada e a pretensão da distância e da objetividade já vai caindo por terra. É quase impossível não me apaixonar pelo Amor...

*

Pois bem. Começo com Do Amor, de Stendhal. A partir do conceito de cristalização, o escritor francês disseca todos os pormenores do amor, apresentando um quadro bem real do sentimento a que todos os homens estão sujeitos, seja por admiração, arrebatamento sincero ou simples vaidade.

Do nascimento do amor
Eis o que se passa na alma:
1º A admiração.
2º Dizemo-nos: "Que prazer dar-lhe beijos, recebê-los! etc."
3º A esperança.
Estudamos as perfeições; é neste momento que a mulher deveria entregar-se, para o maior prazer físico possível. Mesmo entre as mulheres mais reservadas, os olhos se acendem no momento da esperança; a paixão é tão forte e o prazer tão intenso, que se trai através de sinais impressionantes.
4º O amor nasceu.
Amar é ter prazer em ver, tocar, sentir por todos os sentidos, e do modo mais próximo possível, um objeto amável e que nos ama.
5º A primeira cristalização começa.
Sentimos prazer em ornar de mil perfeições uma mulher de cujo amor temos certeza; passamos em revista toda a nossa felicidade com um complacência infinita. Isso se resume em exagerar uma propriedade soberba, que acaba de nos cair do céu, que não conhecemos e cuja posse nos é assegurada.
Deixem a cabeça de um amante funcionar durante vinte e quatro horas e eis o que encontrarão.
Nas minas de sal de Salzburgo, joga-se nas profundezas abandonadas da mina um ramo de árvore desfolhado pelo inverno; dois ou três meses depois, ele é retirado coberto de cristalizações brilhantes: os menores raminhos, aqueles que não são maiores do que a pata de um chapim, são guarnecidos de uma infinidade de diamantes móveis e cintilantes; já não podemos reconhecer o ramo primitivo.
Chamo de cristalização a operação do espírito que extrai de tudo o que se apresenta a descoberta de que o objeto amado tem novas perfeições.
(...) Este fenômeno, que me permito chamar de cristalização, provém da natureza que nos ordena ter prazer e que nos envia sangue ao cérebro, do sentimento de que os prazeres aumentam com as perfeições do objeto amado, e da idéia: ela é minha.

Apesar de ser um texto datado, refletindo os costumes e comportamentos de uma época (a Europa, e, mais especificamente, a França do início do século XIX), é possível perceber o quanto as descrições e pormenores ainda são válidos e verdadeiros nos dias atuais. O tom vai da ironia fina à confissão apaixonada.
Se, em alguns momentos, Stendhal parece zombar dos amantes, é a defesa do amor que se sobressai.

Quando existe a perfeita naturalidade, a felicidade de dois indivíduos chega a se confundir. Graças à simpatia e a várias outras leis de nossa natureza, ela é simplesmente a maior felicidade que possa existir.
Não deixa de ser fácil determinar o sentido da palavra naturalidade, condição necessária da felicidade pelo amor.
Chamamos naturalidade ao que não se afasta da maneira habitual de agirmos. Não é preciso dizer que não apenas nunca devemos mentir para quem amamos, como também não devemos embelezar o mínimo que seja e alterar a pureza de traços da verdade. Pois, quando embelezamos, a atenção se ocupa em embelezar e já não responde ingenuamente, como o toque de um piano, ao sentimento que se mostra nos olhos. Logo ela se dá conta disso por certa frieza que sente, e por sua vez recorre à faceirice. Talvez seja esta a razão oculta por que não podemos amar uma mulher de espírito muito inferior. Ao seu lado podemos fingir impunemente, e como fingir é mais cômodo, por causa do hábito, entregamo-nos à falta de naturalidade. A partir daí o amor já não é amor e passa a não ser nada mais do que um negócio comum: a única diferença é que em vez de dinheiro ganhamos prazer ou vaidade, ou uma mistura dos dois. Mas é difícil deixar de sentir um pouco de desprezo por uma mulher para quem podemos representar impunemente e, por conseguinte, para abandoná-la só nos falta encontrar algo melhor. O hábito ou os juramentos podem prender, mas refiro-me à inclinação do coração, cuja tendência natural é voar para o maior prazer.

*

No apêndice do livro, Stendhal fala sobre as curiosas cortes de amor, cortes que existiram na França, no século XII, presididas por mulheres que discutiam e julgavam questões de amor. As cortes seguiam as determinações de um não menos curioso Código de Amor. São, ao todo, trinta e um artigos:
I. A alegação de casamento não é desculpa legítima contra o amor.
II. Quem não sabe ocultar não sabe amar.
III. Ninguém pode entregar-se a dois amores.
IV. O amor sempre pode crescer ou diminuir.
V. Não tem sabor o que um amante toma à força do outro amante.
VI. De ordinário, o macho só ama em plena puberdade.
VII. Prescreve-se a um dos amantes, por ocasião da morte do parceiro, uma viuvez de dois anos.
VIII. Ninguém, sem uma razão mais do que suficiente, deve ser privado de seu direito em amor.
IX. Ninguém poderá amar se não for envolvido pela persuasão de amor (pela esperança de ser amado).
X. Geralmente o amor é expulso de casa pela avareza.
XI. Não convém amar aquela que teríamos vergonha de desejar em casamento.
XII. O verdadeiro amor só deseja as carícias feitas por quem ele ama.
XIII. Amor divulgado raramente dura.
XIV. O êxito fácil demais logo tira o encanto do amor: os obstáculos aumentam-lhe o valor.
XV. Todo aquele que ama empalidece à vista de quem ama.
XVI. Trememos ao ver de modo imprevisto quem amamos.
XVII. Novo amor expulsa o antigo.
XVIII. Só o mérito torna digno de amor.
XIX. O amor que se extingue logo cai e raramente se levanta.
XX. Quem ama é sempre temeroso.
XXI. Pelo verdadeiro ciúme a afeição de amor cresce continuamente.
XXII. Pela suspeita e pelo ciúme que dela deriva cresce a afeição de amor.
XXIII. Menos dorme e menos come quem é assaltado por pensamento de amor.
XXIV. Tudo o que o amante faz termina em pensar em quem ama.
XXV. O verdadeiro amor só acha bom o que sabe agradar à pessoa amada.
XXVI. O amor nada pode recusar ao amor.
XXVII. O amante não pode saciar-se do gozo de quem ama.
XXVIII. Uma débil presunção faz com que o amante suspeite de coisas sinistras na pessoa amada.
XXIX. O muito excessivo hábito dos prazeres impede o nascimento do amor.
XXX. Uma pessoa que ama está constante e ininterruptamente ocupada com a imagem do ser amado.
XXXI. Nada impede que uma mulher seja amada por dois homens, e um homem por duas mulheres.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Beautiful boy

Life is what happens to you
While you're busy making other plans











(John Lennon)

Close your eyes
Have no fear
The monster's gone
He's on the run and your daddy's here

Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy

Before you go to sleep
Say a little prayer
Every day in every way
It's getting better and better

Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy

Out on the ocean sailing away
I can hardly wait
To see you come of age
But I guess we'll both just have to be patient
'Cause it's a long way to go
A hard row to hoe
Yes it's a long way to go
But in the meantime

Before you cross the street
Take my hand
Life is what happens to you
While you're busy making other plans

Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy

Before you go to sleep
Say a little prayer
Every day in every way
It's getting better and better

Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Darling, darling, darling
Darling Sean


segunda-feira, 25 de abril de 2011

Os frágeis rostos da identidade

"A noção de 'pessoa' inclui a imagem que temos de nós mesmos. A ideia da nossa identidade, da nossa posição na vida, se encontra ancorada na mente e influi de forma constante nas nossas relações com os outros. Quando uma conversa toma um mau caminho, não é tanto o tema da conversa o que nos incomoda, mas o questionamento da nossa identidade. Qualquer palavra que ameaça a imagem que temos de nós mesmos se torna insuportável, enquanto o mesmo qualificativo aplicado a outro, em circunstâncias diferentes, apenas nos afeta. Se alguém tem uma imagem forte de si mesmo, tentará constantemente assegurar-se de que seja reconhecida e aceita. Não há nada mais doloroso do que vê-la colocada em dúvida.
Mas que valor tem esta identidade? É interessante lembrar que 'personalidade' vem de persona, que em latim significa 'máscara'. A máscara 'através' da qual o ator faz 'ressoar' (sonat) seu papel. Enquanto o ator sabe que leva uma máscara, com frequência esquecemos de distinguir entre o papel que representamos na sociedade e nossa natureza profunda.
(...) Normalmente, tememos abordar o mundo sem referências e nos dá vertigem quando chega o momento em que caem as máscaras e os qualificativos: se já não sou músico, escritor, funcionário, culto, bonito ou forte, quem sou? No entanto, não levar nenhuma etiqueta é a melhor garantia de liberdade e a maneira mais flexível, leve e alegre de passar pelo mundo."

(Em defesa da felicidadeMatthieu Ricard)

domingo, 24 de abril de 2011

Na natureza selvagem

(Jon Krakauer)

Àquela altura, Chris partira havia muito tempo. Cinco semanas antes, enfiara todas as suas coisas em seu pequeno carro e zarpara para o oeste, sem destino. A viagem seria uma odisséia no pleno sentido do termo, uma jornada épica que mudaria tudo. Ele passara os quatro anos anteriores, tal como via as coisas, preparando-se para cumprir um dever oneroso e absurdo: graduar-se na faculdade. Finalmente estava desimpedido, emancipado do mundo sufocante de seus pais e pares, um mundo de abstração, segurança e excesso material, um mundo em que ele se sentia dolorosamente isolado da pulsação vital da existência.
Saindo de Atlanta para o oeste, pretendia inventar uma vida totalmente nova para si mesmo, na qual estaria livre para mergulhar na experiência crua, sem filtros. Para simbolizar a ruptura completa com sua vida anterior, adotou um nome novo. Não mais atenderia por Chris McCandless; era agora Alexander Supertramp, senhor de seu próprio destino.

Dois anos ele caminha pela terra. Sem telefone, sem piscina, sem animal de estimação, sem cigarros. Liberdade definitiva. Um extremista. Um viajante estético cujo lar é a estrada. Fugido de Atlanta, não retomarás, porque "o Oeste é o melhor". E agora depois de dois anos errantes chega à última e maior aventura. A batalha final para matar o ser falso interior e concluir vitoriosamente a revolução espiritual. Dez dias e noites de trens de carga e pegando carona trazem-no ao grande e branco Norte. Para não mais ser envenenado pela civilização, ele foge e caminha sozinho sobre a terra para perder-se na natureza selvagem.
Alexander Supertramp, Maio de 1992

"É possível que este seja o mesmo Alex que partiu em julho de 1990? A desnutrição e a estrada fizeram estragos em seu corpo. Mais de dez quilos perdidos. Mas seu espírito está nas alturas".

“Morou nas ruas com vadios, vagabundos e bêbados durante várias semanas. Vegas, no entanto, não seria o fim da história. A 10 de maio, a comichão nos pés voltou e Alex largou seu emprego na cidade de Vegas, recuperou sua mochila e retomou à estrada, embora tenha descoberto que, se você é estúpido o suficiente para enterrar uma câmera, não vai tirar muito mais fotografias depois. Assim, a história não tem álbum de fotos para o período que vai de 10 de maio de 1991 a 7 de janeiro de 1992. Mas isso não é importante. É nas experiências, nas lembranças, na grande e triunfante alegria de viver na mais ampla plenitude que o verdadeiro sentido é encontrado. Meu Deus, como é bom estar vivo! Obrigado. Obrigado.”

Gostaria de repetir o conselho que lhe dei antes: acho que você deveria realmente promover uma mudança radical em seu estilo de vida e começar a fazer corajosamente coisas em que talvez nunca tenha pensado, ou que fosse hesitante demais para tentar. Tanta gente vive em circunstâncias infelizes e, contudo, não toma a iniciativa de mudar sua situação porque está condicionada a uma vida de segurança, conformismo e conservadorismo, tudo isso que parece dar paz de espírito, mas na realidade nada é mais maléfico para o espírito aventureiro do homem que um futuro seguro. A coisa mais essencial do espírito vivo de um homem é sua paixão pela aventura. A alegria da vida vem de nossos encontros com novas experiências e, portanto, não há alegria maior que ter um horizonte sempre cambiante, cada dia com um novo e diferente Sol.
(...) Você está errado se acha que a alegria emana somente ou principalmente das relações humanas. Deus a distribuiu em toda a nossa volta. Está em tudo e em qualquer coisa que possamos experimentar. Só temos de ter a coragem de dar as costas para nosso estilo de vida habitual e nos comprometer com um modo de viver não convencional.
O que quero dizer é que você não precisa de mim ou de qualquer outra pessoa em volta para pôr esse novo tipo de luz em sua vida. Ele está simplesmente esperando que você o pegue e tudo que tem a fazer é estender os braços. A única pessoa com quem você está lutando é você mesmo e sua teimosia em não entrar em novas situações.

Tudo mudara subitamente - o tom, o clima moral; não sabias o que penar; a quem ouvir. Como se em toda a tua vida tivesses sido conduzido pela mão como uma criança pequena e de repente tivesses de ficar por tua própria conta, tinhas de aprender a andar sozinho. Não havia ninguém por perto, nem família nem pessoas cujo julgamento respeitasses. Em tal momento, sentias a necessidade de dedicar-te a algo absoluto - vida, verdade, beleza -, de ser regido por isso, em lugar das regras feitas pelos homens que tinham sido descartadas. Precisavas render-te a um tal objetivo último de modo mais pleno, mais sem reservas do que jamais fizeras nos velhos dias familiares e tranqüilos, na velha vida que estava agora abolida e abandonada para sempre.
Boris Pasternak, Doutor Jivago
Trecho sublinhado em um dos livros encontrados com os restos de Chris McClandless
"NECESSIDADE DE UM OBJETIVO", estava escrito com a letra de McClandles na margem acima do trecho.

Nas últimas páginas do livro que lhe servia de diário, declarou:
Renasci. Esta é minha aurora. A vida verdadeira apenas começou.
Viver deliberadamente: atenção consciente ao básico da vida e uma atenção constante ao meio ambiente imediato e o que lhe diz respeito, exemplo - um emprego, uma tarefa, um livro; tudo exigindo concentração eficiente. (Circunstância não tem valor. É como a gente se relaciona com uma situação que tem valor. Todo significado verdadeiro reside na relação pessoal a um fenômeno, o que ele significa para você.)
A Grande Santidade da COMIDA, o Calor Vital.
Positivismo, a Insuperável Alegria da Estética da Vida.
Verdade Absoluta e Honestidade.
Realidade.
Independência.
Finalidade - Estabilidade - Consistência.

A 2 de julho, terminou de ler "Felicidade familiar", de Tolstoi, tendo marcado vários trechos que o emocionaram:
Ele tinha razão ao dizer que a única felicidade certa na vida é viver para os outros...
Passei por muita coisa na vida e agora penso que encontrei o que é necessário para a felicidade. Uma vida tranqüila e isolada no campo, com a possibilidade de ser útil à gente para quem é fácil fazer o bem e que não está acostumada que o façam; depois trabalhar em algo que se espera tenha alguma utilidade; depois descanso, natureza, livros, música, amor pelo próximo - essa é a minha idéia de felicidade. E depois, no topo de tudo isso, você como companheira, e filhos talvez - o que mais pode o coração de um homem desejar?

Seria fácil estereotipar Christopher McCandless como mais um garoto com sensibilidade demais, um jovem maluco que lia livros em demasia e não tinha um mínimo de bom senso. Mas o estereótipo não se encaixa. McCandless não era um indolente incapaz, perdido e confuso, torturado por desespero existencial. Ao contrário: sua vida estava cheia de significados e propósitos. Mas o significado que ele tirava da existência estava longe do caminho confortável: ele não confiava no valor das coisas que vêm facilmente. Exigia muito de si mesmo mais, no final, do que podia dar.
Tentando explicar o comportamento heterodoxo de McCandless algumas pessoas deram ênfase ao fato de que, tal como John Waterman, era de estatura baixa e talvez tivesse "complexo de baixinho", uma insegurança fundamental que o levou a provar sua masculinidade por meio de desafios físicos extremos. Outros afirmaram que um conflito edípico não resolvido estava na raiz de sua odisséia fatal. Embora possa haver alguma verdade em ambas as hipóteses, esse tipo de psicanálise póstuma de almanaque é uma iniciativa duvidosa e altamente especulativa que degrada e banaliza inevitavelmente o analisando ausente. Não está claro o que se ganha reduzindo a estranha busca espiritual de McCandless a uma lista de distúrbios psicopatológicos.

Acabara de ler Doutor Jivago, um livro que o incitara a rabiscar notas entusiasmadas nas margens e sublinhar vários trechos:
Lara caminhou ao lado dos trilhos, seguindo uma trilha gasta pelos peregrinos, e depois entrou nos campos. Ali parou e, fechando os olhos, respirou fundo o ar perfumado pelas flores da vastidão em tomo dela. Aquilo era mais querido para ela do que seus parentes, melhor que um amante, mais sábio que um livro. Por um instante, redes cobriu o objetivo de sua vida. Estava aqui na terra para captar o sentido desse encantamento selvagem e chamar cada coisa por seu nome certo, ou, se não fosse capaz disso, dar à luz, por amor à vida, sucessores que o fariam em seu lugar.
"NATUREZA/PUREZA", grafou em negrito no alto da página.
Oh, como se deseja às vezes escapar da estupidez sem sentido da eloqüência humana, de todas aquelas frases sublimes, para se refugiar na natureza, aparentemente tão inarticulada, ou na ausência de palavras da labuta longa e pesada, do sono saudável, da verdadeira música, ou de uma compreensão humana tomada muda pela emoção!
Ao lado de "E assim se concluiu que somente uma vida semelhante à vida daqueles ao nosso redor, mesclando-se a ela sem murmúrio, é vida genuína, e que uma felicidade não compartilhada não é felicidade. [...] E isso era o mais perturbador de tudo", ele escreveu: "FELICIDADE SÓ REAL QUANDO COMPARTILHADA".

*
Mais Na natureza selvagem em Filosofia de vida e Muito além da análise.

domingo, 17 de abril de 2011

Muito além da análise

Já falei sobre o filme "Na natureza selvagem" aqui antes, mas acredito que o evento de ontem merece mais uma postagem. O Núcleo de Psicanálise da UniSantos voltou a realizar o Ciclo de Cinema: apresentação de um filme, seguida de discussão com convidados. Sendo o "Olhar da Psicanálise", dava para suspeitar o que viria...
Depois de pouco mais de duas horas de uma história incrível, imagens fantásticas, trilha sonora inspiradora e muita emoção, vieram a discussão e, acreditem, a análise psicológica do personagem principal, Christopher McCandless! Juro que as palavras "patologia", "incapacidade de desenvolvimento afetivo" e "falta de identificação com as figuras parentais" foram usadas. Fiquei passada! Os comentários, em sua maioria, se limitavam a aludir aos problemas familiares e a lamentar o que chamavam de "tragédia anunciada" e a vida perdida de um rapaz um tanto desmiolado. A ideia por trás era a de que ele não precisava arriscar sua vida só para fugir dos pais e da sua inabilidade de encarar a dor e os relacionamentos humanos. Uma senhora, que se declarou budista, disse que ele foi muito extremista e que deveria ter escolhido o "caminho do meio"!
A idolatria do ego e a redução da existência humana ao histórico familiar e pessoal e às tendências psicológicas! Será que a pergunta "quem sou eu?" se reduz a isso?
Com todo o respeito que tenho por psicológos (!), conseguiram acabar com o filme (melhor dizendo, teriam conseguido, não fosse o filme tão bom, independente de qualquer análise...). A história, para mim, mostra uma pessoa perfeitamente lúcida, que é capaz de perceber todas as ilusões e o vazio dos papéis e padrões sociais de que é cercada, e, numa atitude de coragem (e não de fuga!), transcende sua condição original e decide viver sem toda a bobagem de que a tal sociedade é feita. No meio de tanta cegueira, Christopher McCandless/Alexander Supertramp (meu Deus, ele era um esquizofrênico!) é o que consegue ver além das aparências e viver uma vida realmente autêntica, livre de todas as identificações e dependências (inclusive, ou principalmente, as psicológicas) e apego ao que é familiar e confortável (principalmente do ponto de vista psicológico). Ele consegue simplesmente Ser.
(Acredito que isso de Ser não é para aqueles que se prendem às explicações psicológicas - sejam elas boas ou más, acertadas ou totalmente equivocadas - da própria vida e da tal personalidade (não é ótimo ter uma? se for forte, então, melhor ainda!) e passam a viver somente em função delas, se definindo apenas em termos do que viveram e do que isso significa).
Mas nem tudo foi análise psicológica no evento de ontem. O jornalista, documentarista e professor Eduardo Rajabally lançou uma luz bem mais interessante sobre o filme. A partir da etimologia da palavra "experiência" (ligada tanto às palavras "provar" e "experimentar", quanto a "perigo"), ele falou sobre o significado de passar pelas situações e circunstâncias da vida e sair delas modificado. E esta é a beleza deste road movie. A estrada, o caminho, a travessia, os limites são os meios externos para uma jornada interior de transformação e descobertas.
Num mundo organizado em torno de brinquedos tecnológicos (quem vive sem seu celular ou seu iPod?), em que velocidade, volume de informação e muita opinião ditam o ritmo, a vida humana parece ter sido esvaziada de experiências. "Informação é o contrário de experiência" porque só conseguimos apreender os dados do mundo a partir de experiências alheias. "A ciência transformou o mundo da experiência no mundo do experimento". E neste esvaziamento das experiências humanas autênticas, nós passamos pela "estrada" de olhos vendados, apenas acumulando condicionamentos e conceitos inúteis sobre nós mesmos. "É por isso que filmes como esse são perturbadores. Porque nos fazem perceber que falta alguma coisa na nossa vida".
"Nós queremos fazer a mesma viagem que ele fez, mas queremos ir de CVC". Pois é! Quem tem coragem de abandonar o que é familiar em busca de algo maior? Quem é que tem coragem de Ser?

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Aprendiz de Alberto Caeiro

Hoje, Marcéu e eu demos o nosso primeiro passeio no parque. A intenção era fazer ele dormir depois do almoço. Marcéu é o meu sobrinho lindo, de quase um ano, filho da minha irmã, que escolheu esse nome porque queria juntar o mar e o céu em uma só pessoa. Os pais da cantora Ceumar tiveram a mesma ideia. Eu brincava com a minha irmã, dizendo que ele seria a linha do horizonte. ..
Dia de outono perfeito, com sol, céu azul e brisa fresquinha. O passeio pelo Parque Ipupiara (a Praça 22 de Janeiro, lugar que marcou a minha infância) foi um deslumbre para os olhos. Os do Marcéu e, por causa dele, os meus também. Tudo chamava a atenção, tudo tinha o seu encanto. As árvores, os pássaros, os peixinhos, os anões e a Branca de Neve, os cachorros que passavam, as crianças que brincavam. Até aquele monstro horrível do Ipupiara se tornou uma atração.
Depois, fomos até a Biquinha. O Marcéu, que, no parque, já tinha gostado muito do Benedito Calixto, então se encantou com o Padre Anchieta. E pediu pela água fresca da bica, saída da boca de um leão e servida na mão em conchinha.
Seguimos para o deque dos pescadores. Mais atrações irresistíveis para os olhos. O mar, os barquinhos, as gaivotas e garças no céu, os pescadores e as varas de pescar. Fascinado, ele tentava compreender aquele negócio com fio comprido que era lançado para trás e arremessado para frente com uma bola colorida na ponta.
No último trecho do caminho de volta para casa, o Marcéu dormiu. Deve ter sonhado com árvores e pássaros e peixes e varas de pescar...
Dia de prazer puro e simples. Lição de olhar e ver tudo muito bem. Como o Alberto Caeiro, para quem aprender a ver (e desaprender a pensar) é a maior filosofia. Não é à toa que ele é considerado mestre por Álvaro de Campos, outro heterônimo de Fernando Pessoa. Hoje, os aprendizes fomos nós, mas desconfio que o mestre, no fundo, no fundo, tenha aprendido essa lição com os pequenos...

*

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

(Poema II, do livro O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro)

*

(Comentário à parte... Depois, tenho que escrever também sobre o Miguel, meu outro sobrinho lindo, de 5 anos, filho do meu irmão. Já falei aqui sobre o meu "rei da piscina", mas ultimamente ele anda mais para caçador de aranhas e super-herói da Marvel... Digo isso porque descobri que, quando se trata de sobrinhos, tudo o que a gente faz para um, tem que fazer para o outro, mesmo que seja mordida no pé ou ataque de cócegas...
Mais um comentário. Com estas duas criaturinhas enchendo nossa vida de amor e alegria, minha mãe deu para me perguntar quando vai ser a minha vez. Falta uma neta, é o que ela diz. Bom, não sei quando vai ser a minha vez, nem sequer se eu vou ter vez. Mas é com alegria e gratidão que digo que, no momento atual da minha vida, não só fiquei para titia, mas simplesmente nasci para ser a tia do Miguel e do Marcéu.)

terça-feira, 29 de março de 2011

Com nada, já dá para começar.

(Paulo Leminski)

domingo, 27 de março de 2011

quinta-feira, 17 de março de 2011

Vagabundos Iluminados

(Jack Kerouac)

"Ah, pobres idéias que um homem tem, e um homem sozinho na praia, e Deus observando com atenção e sorrindo...", eu diria.

Mas parecia que eu tinha visto a tarde de antigamente daquela trilha, de pedras da pradaria e florzinhas de lupino, a repentinos reencontros com o riacho gorgolejante com suas pontes de troncos caídos salpicados pela água e seu verde do fundo do mar, havia um peso inexplicável no meu coração como se eu já tivesse vivido antes e já tivesse caminhado por aquela trilha em circunstâncias parecidas com um companheiro bodisatva, mas talvez em uma missão mais importante, tive vontade de deitar-me ao lado da trilha e me lembrar de tudo aquilo. Quando a gente está no mato, fica com essa sensação: sempre parece que você já conhece aquele lugar, há muito esquecido, como o rosto de um parente morto há muito tempo; como um sonho antigo, como o trecho de uma canção esquecida que está à deriva sobre a água, mas acima de tudo como eternidades douradas de infância passada ou de vida adulta passada e todos os vivos e os que estão à beira da morte e o coração que bateu ali há um milhão de anos e as nuvens que vão passando lá em cima parecem servir de testemunha dessa sensação (devido à sua própria familiaridade solitária). Êxtase, até, senti, com lampejos repentinos de lembranças, e me sentindo suado e sonolento, tive vontade de dormir e sonhar na relva.

"O segredo desse tipo de escalada", disse Japhy, "é como o zen. Não pense. Simplesmente dance de acordo com o ritmo. É a coisa mais fácil do mundo, aliás, é mais fácil do que andar em terreno plano, que é monótono. Probleminhas meigos se apresentam a cada passo e no entanto a gente nunca hesita e se vê em outra pedra escolhida sem nenhuma razão especial, igualzinho ao zen." O que era mesmo.

"É, cara, sabe que para mim uma montanha é um Buda. Pense na paciência, centenas de milhares de anos só paradas ali perfeitamente silenciosas e como se estivessem rezando por todas as criaturas vivas naquele silêncio e só esperando que a gente acabasse com toda a nossa complicação e nossas bobagens."

"Ah, Japhy, você me ensinou a lição mais definitiva de todas, que é impossível cair de uma montanha". "E é exatamente isso que quer dizer, 'Quando chegar ao topo de uma montanha, continue escalando', Smith".

"Vamos lá, Ray, tudo acaba alguma hora." Na verdade, percebi que não tinha mesmo coragem nenhuma, o que eu já sabia havia muito tempo. Mas tenho alegria.

Japhy pulando: "Tenho lido Whitman, sabe o que ele diz, Cheer up slaves, and horrify foreign despots, ele quer dizer que a atitude para o Bardo, o bardo zen-lunático dos antigos caminhos do deserto, vê a coisa toda como um mundo cheio de andarilhos de mochilas nas costas, Vagabundos do Darma, que se recusam a concordar com a afirmação generalizada de que consomem a produção e portanto precisam trabalhar pelo privilégio de consumir, por toda aquela porcaria que não queriam, como refrigeradores, aparelhos de TV, carros, pelo menos os carros novos e chiques, certos óleos de cabelo e desodorante e bobagens em geral que a gente acaba vendo no lixo depois de uma semana, todos eles aprisionados em um sistema de trabalho, produção, consumo, trabalho, produção, consumo, tenho a visão de uma grande revolução de mochilas, milhares ou até mesmo milhões de jovens americanos vagando por aí com mochilas nas costas, subindo montanhas para rezar, fazendo as crianças rirem e deixando os velhos contentes, deixando meninas alegres e moças ainda mais alegres, todos esses zen-lunáticos que ficam aí escrevendo poemas que aparecem na cabeça deles sem razão nenhuma e também por serem gentis e também por atos estranhos inesperados vivem proporcionando visões de liberdade para todo mundo e todas as criaturas vivas, é disso que eu gosto em vocês, Goldbook e Smith, vocês são dois caras da Costa Leste que eu achei que estava morta."

Mas eu tinha minhas próprias idéias e elas não tinham nada a ver com a parte "lunática" de tudo aquilo. Eu queria comprar um equipamento completo com tudo que é preciso para dormir, abrigar-se, comer, cozinhar, na verdade uma cozinha e um quarto completos bem nas minhas costas, e partir para algum lugar e encontrar a solidão perfeita e olhar para o perfeito vazio da minha mente e ser completamente neutro em relação a qualquer e toda idéia. Pretendo rezar, também, como minha única atividade, rezar por todas as criaturas vivas; percebi que essa era a única atividade decente que sobrara no mundo. Estar no leito de um rio em algum lugar, ou no deserto, ou nas montanhas, ou em alguma cabana no México ou em um barraco em Adirondack, e descansar e ser gentil, e não fazer nada além disso, praticar o que os chineses chamam de "não fazer nada".

Todo entusiasmado, voltei para o mato naquela noite e pensei: "O que significa eu estar neste universo infinito, pensando que sou um homem sentado sob as estrelas na varanda da terra, mas na verdade sou o vazio e estou desperto naquele vazio e despertar de todas as coisas? Significa que eu sou vazio e estou desperto, e eu sei que sou o vazio, que estou desperto, e que não há diferença entre mim e todas as outras coisas. Em outras palavras, significa que eu me transformei na mesma coisa que tudo o mais. Significa que eu me transformei no Buda".

Por que é que eu me importava com o chiado do pequeno euzinho que vagava por todos os lados? Eu atuava no campo da inspiração, isolamento, corte, expiração, exibição, decepção, desacontecimento, fim, finalização, elo cortado, nada, elo, sei lá, acabou! "A poeira dos meus pensamentos guardada em um globo", pensei, "nesta solidão atemporal", pensei, e sorri de verdade porque estava vendo a luz branca em tudo em todos os lugares afinal.

Meditei e rezei. Realmente não existe nenhum tipo de noite de sono no mundo que possa se comparar à noite de sono que se tem em uma noite de inverno no deserto, desde que se esteja bem acomodado e aquecido em um saco de dormir de pena de pato. O silêncio é tão intenso que dá para ouvir o próprio sangue rugindo nos ouvidos, mas mais alto do que isso, de longe, é o bramido misterioso que eu sempre identifico com o bramido do diamante da sabedoria, o misterioso bramido do próprio silêncio, que é um magnífico Shhhh que serve como lembrete de algo que a gente parece ter esquecido em meio à estafa dos dias desde que nascemos. Gostaria de poder explicar isso às pessoas que eu amo, à minha mãe, a Japhy, mas simplesmente não existem palavras que possam descrever o "nada" e a pureza daquilo.

"Você sabe como Kasyapa se tornou o Primeiro Patriarca? O Buda estava pronto para começar a expor um sutra e mil duzentos e cinqüenta bikkhus estavam esperando com as vestes arrumadas e os pés cruzados, e tudo que o Buda fez foi erguer uma flor. Todo mundo ficou perturbado. O Buda não disse nada. Só Kasyapa sorriu. Foi assim que o Buda escolheu Kasyapa. Isso ficou conhecido como o sermão da flor, rapaz."
Entrei na cozinha e peguei uma banana e saí e disse: "Bom, vou te contar o que é o nirvana".
"O quê?"
Comi a banana e joguei a casca fora e não disse nada. "Este é o sermão da banana."

Então, por um instante, tive a mais tremenda sensação de pena dos seres humanos, sejam eles o que forem, o rosto, a boca cheia de dor, personalidades, tentativas de ser alegres, pequenas petulâncias, sensação de perda, piadinhas chatas e vazias que logo seriam esquecidas: ah, para quê? Eu sabia que o som do silêncio estava em todo lugar e que portanto tudo em todo lugar era silêncio. Suponha que de repente acordássemos e víssemos que o que achamos ser isto ou aquilo na verdade não é nada disto nem daquilo?

Trilhas são assim: a gente flutua em um paraíso shakespeariano de Arden e espera ver ninfas e flautistas, e daqui a pouco já está se matando sob um sol quente dos infernos em meio à poeira e às urtigas e aos arbustos venenosos... igualzinho à vida.

Os três últimos quilômetros da colina foram terríveis e eu disse: "Japhy, há uma coisa que eu gostaria de ter agora mais do que qualquer outra no mundo... mais do que tudo que eu sempre quis na vida". Rajadas de vento frio do entardecer sopravam, nós nos apressávamos com o corpo curvado e a mochila nas costas pela trilha infindável.
"O quê?"
"Uma linda barra grande de chocolate, podia até ser uma pequena. Por uma razão qualquer, uma barra de chocolate salvaria a minha alma agora."

Será que somos anjos caídos que não quiseram acreditar que o nada é nada e portanto nascemos para perder aqueles que amamos e os amigos queridos um por um e afinal nossa própria vida, para ter essa comprovação?

Sessenta pores do sol eu tinha visto refletindo naquela linha vertical. A visão da liberdade da eternidade era minha para sempre. O esquilo correu para o meio das pedras e uma borboleta saiu voando. Tudo era simples assim.

terça-feira, 8 de março de 2011

dia azul

meus olhos tomaram banho de mar.
meu corpo banhou-se de céu.
a alma inundada de azul,
voltei para casa azulada.

(azul: cor ou estado?)

segunda-feira, 7 de março de 2011

Bliss

"O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade — felicidade absoluta! — como se tivesse engolido um brilhante pedaço daquele sol da tardinha e ele estivesse queimando o peito, irradiando um pequeno chuveiro de chispas para dentro de cada partícula do corpo, para cada ponta de dedo?"

"Quase não tinha coragem de olhar-se no espelho frio; mas olhou, e ele mostrou-lhe uma mulher radiante, com lábios trêmulos, sorridentes, grandes olhos escuros e um ar de quem está à espera de que alguma coisa... divina aconteça. Ela sabia que iria acontecer infalivelmente."

(Bliss, Katherine Mansfield)

terça-feira, 1 de março de 2011

“O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome.” (De uma carta de Hélio Pellegrino a Fernando Sabino, citada em O Encontro Marcado).

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Faxinas e faxinas

Numa postagem anterior, falei sobre jogar coisas fora. É que ultimamente ando arrumando muitos armários. Simplesmente adoro. Não que tenha mania de limpeza e de arrumação. Gosto de tudo limpo e arrumado, mas nada que configure um comportamento compulsivo. O lance dos armários é mais como uma terapia. Abrir as portas, olhar aquela bagunça, tirar tudo de dentro, e ir cerimoniosamente analisando cada coisa, limpando o que precisa ser limpo, conservando o que ainda é importante e me desfazendo de tudo o que não serve mais.
Armário ou alma, o ritual é o mesmo. Contemplar o caos de si mesmo e se libertar do que já não é mais necessário. Trabalho de uma vida inteira.
Outro dia, li de monge budista que a felicidade não significa se desenvolver ou conquistar coisas ou pessoas, mas consiste em eliminar gradualmente tudo que nos afasta do conhecimento verdadeiro de nós mesmos e da autêntica alegria de viver. Ao contrário do que estamos acostumamos a pensar, a fórmula seria a da subtração, e não a da adição. Pois, para mim, a arrumação de armários me ajuda nesse exercício de desapego e libertação.
Apesar da minha tendência e gosto por "jogar coisas fora", não compreendia muito bem como equalizar a relação entre amor e desapego. Mas hoje sei que o amor verdadeiro não precisa de realidade para existir. E o exercício continua...
Toda essa faxina de armários e alma me lembra o poema Consoada, do Manuel Bandeira, e a conquista final da leveza suprema antes de partir.

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Livro do Desassossego

(Fernando Pessoa)

A glória nocturna de ser grande não sendo nada!

Deus é o existirmos e isto não ser tudo.

Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.

Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das ideias, lendo, sonhando, e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para estar sempre à beira do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar nele. Viver essa vida longe das emoções e dos pensamentos, só no pensamento das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar, ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra, aquela fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida.

A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. Se quiser dizer que existo, direi "Sou". Se quiser dizer que existo como alma separada, direi "Sou eu". Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei-de empregar o verbo "ser" senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi "Sou-me".

Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção - isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.

Melhores, e mais felizes, os que, reconhecendo a ficção de tudo, fazem o romance antes que ele lhes seja feito.

Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são horas, vou até ao rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por detrás de isso, céu meu, constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito.

Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Água Viva

(Clarice Lispector)

Meus dias são um só clímax: vivo à beira.

Assim como me lanço no traço de meu desenho, este é um exercício de vida sem planejamento. O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer.

Quero lonjuras. Minha selvagem intuição de mim mesma. Mas o meu principal está sempre escondido. Sou implícita. E quando vou me explicitar perco a úmida intimidade.

Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários. Para onde vou? e a resposta é: vou.

E nada planejo no meu trabalho intuitivo de viver: trabalho com o indireto, o informal e o imprevisto.

Quanto à música, depois de tocada para onde ela vai? Música só tem de concreto o instrumento. Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical. Mas ainda mais atrás há o coração batendo. Assim o mais profundo pensamento é um coração batendo.

Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixamente por uns instantes. Tais momentos são meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade.

Mesmo para os descrentes há o instante do desespero que é divino: a ausência de Deus é um ato de religião.

A coragem de viver: deixo oculto o que precisa ser oculto e precisa irradiar-se em segredo.

O que me guia apenas é um senso de descoberta. Atrás do atrás do pensamento.

Todas as vidas são vidas heróicas.

Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser: eis os limites de minha possibilidade.

Antes de me organizar, tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me.

Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas - nunca o ato de entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. E quem sou eu para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei porém que só andando é que se sabe andar e - milagre - se anda.

Para cada um de nós e - em algum momento perdido na vida - anuncia-se uma missão a cumprir? Recuso-me porém a qualquer missão. Não cumpro nada: apenas vivo.

Eu não tenho enredo de vida? sou inopinadamente fragmentária. Sou aos poucos. Minha história é viver. E não tenho medo do fracasso. Que o fracasso me aniquile, quero a glória de cair.

Cada um de nós é um símbolo que lida com símbolos - tudo ponto de apenas referência ao real. Procuramos desesperadamente encontrar um identidade própria e a identidade do real. E se nos entendemos através do símbolo é porque temos os mesmos símbolos e a mesma experiência da coisa em si: mas a realidade não tem sinônimos.

Estou me encontrando comigo mesma: é mortal porque só a morte me conclui. Mas eu aguento até o fim. Vou lhe contar um segredo: a vida é mortal.

O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe e existe o mundo. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão leve. É uma lucidez de quem não precisa mais adivinhar: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não me pergunte o quê, porque só posso responder do mesmo modo: sabe-se.

Essa beatitude não é em si leiga ou religiosa. E tudo isso não implica necessariamente no problema da existência ou não-existência de um Deus. Estou falando é que o pensamento do homem e o modo como esse pensar-sentir pode chegar a um grau extremo de incomunicabilidade - que, sem sofisma ou paradoxo, é ao mesmo tempo, para esse homem, o ponto de comunicabilidade maior. Ele se comunica com ele mesmo.

Tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Conversa entre amigos

Hoje de manhã, encontrei por acaso meu amigo Vinícius na ciclovia. Paramos um pouco para conversar. Pelo modo como nós costumamos conversar, hoje percebi que, na verdade, parece que nós sempre temos uma única, longa conversa, retomada toda vez que nos encontramos. Em geral, falamos sobre a vida, filosofia, filmes, livros...
Hoje não foi diferente. Japamala, meditação, iniciação, tempo e a falta de tempo; Comer, rezar, amar, O poder do mito (preciso devolver o seu livro), O tempo na literatura, Mr. Nobody e, de novo, o tempo. Afinal qual é a do Mr. Nobody? A luta pela escolha de uma possibilidade ou a vivência simultânea de todas as possibilidades? Você entende, eu não. "Mas é um filme bonito". O Jared Leto é bonito.
Além da vida, A origem, O último mestre do ar, o desenho Avatar (se um dia eu tiver um filho...).
Simplesmente amor (se eu já vi Simplesmente Amor?!), Três vezes amor, Coincidências do amor (ou o amor vende filme ou é muita falta de criatividade dos tradutores...).
E por falar em amor, Apenas o fim. Comecei a ver por acaso, zapeando na tevê. Amei. É daqueles filmes que a gente assiste com um sorriso no rosto, sem perceber. Conversas sobre o amor, McDonald's e fanta uva. Ao final, veio na minha cabeça sua voz dizendo "é o Antes do amanhecer brasileiro". É exatamente o tipo de filme que você me indicaria, mas indicou? Não lembrava. Foi você que falou desse filme? "Claro, é o Antes do amanhacer brasileiro!".
House, tema obrigatório, não foi discutido como de costume, mas não podia deixar de ser citado.
Autobiografia de um iogue (quando acabar o seu Bhavagad Gita, versão bíblia, me avisa pra eu emprestar). Os livros que a gente relê (afinal, por que a gente relê tanto, em vez de ler?).
Teve outros assuntos, mas não daria para escrever sobre tudo. Como a gente conseguiu falar tanta coisa em tão pouco tempo?
Engraçado eu querer publicar nossa conversa aqui (aliás, já, já vou pedir a sua devida autorização). Mas é que eu também percebi que esse blog não passa de uma longa e única conversa, e que, afinal, tudo é uma coisa só. Só posso dizer, que, de um modo que não consigo explicar, todas essas conversas me fazem bem e me apontam algum sentido.
Para encerrar, deixo aqui a indicação de Apenas o fim, filme que é também uma longa e prazerosa conversa.



(o filme está todo disponível no youtube)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A poesia da vida real

Um antigo cajueiro, um par de luvas esquecido atrás de livros, uma borboleta amarela pelas ruas, um nadador no mar, uma manhã entre amantes. Qualquer assunto, por mais trivial ou corriqueiro que seja, pode se transformar em tema de crônica.
Mais que uma experiência ou verdade fundamental, a leitura de crônicas parece antes sugerir uma sensação, ou diferentes sensações que se seguem e que, no conjunto, criam uma espécie de empatia e formam uma imagem quase nítida daquele que escreve. A cumplicidade na banalidade poética do cotidiano rende um amigo. Um dos meus melhores amigos é o Rubem Braga.

Há algum tempo, vinha seguindo uma dieta - nada rígida, é verdade - de duas crônicas por dia. Lidas, em geral, depois do almoço e antes da sesta sagrada. A ideia era deixar que a sensação provocada pela leitura homeopaticamente prescrita e digerida pudesse me acompanhar ao longo do dia. Saborear cada texto lentamente, como toda boa crônica merece. Mas na última semana, num ímpeto de gula, devorei o livro inteiro. A sensação final e cristalizada de beleza da vida real, em sua realidade mais cotidiana e prosaica - e talvez por isso mais poética -, compensou a imprudência.

Cada início de crônica é uma promessa:

No centro do dia cinzento, no meio da banal viagem, e nesse momento em que a custo equilibramos todos os motivos de agir e de cruzar os braços, de insistir e desesperar, e ficamos quietos, neutros e presos ao mais medíocre equilíbrio - foi então que aconteceu. (Visão)

E o fim pode trazer uma revelação inesperada:

Ouvi-me, pois, insensatos; ouvi-me a mim e não a essa infame e horrenda serra que a vós e a mim tanto azucrina. Vamos para a praia. E se o proprietário vier, se o banqueiro vier, se o governo vier, e perguntar com ferocidade: "estais loucos?" - nós responderemos: "Não, senhores, não estamos loucos; estamos na praia jogando peteca". E eles recuarão, pálidos e contrafeitos. (Manifesto)

Entre o início e o fim, a beleza:

Houve um momento, aquele momento em que a carne se faz alma. (Às duas horas da tarde de domingo)

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho? (Despedida)

Deixo aqui um aperitivo:

A Palavra
(Rubem Braga)

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento - e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven - e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído - talvez palavras de algum poeta antigo - foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O eu e o tempo

"O tempo é particularmente significante para o homem porque é inseparável do conceito do eu. Somos conscientes de nosso próprio crescimento orgânico e psicológico no tempo. O que chamamos eu, pessoa ou indivíduo, é experimentado e conhecido somente contra o fundo da sucessão de momentos e mudanças temporais que constituem sua biografia. Mas como é possível que aquilo que está sujeito a constante mutação possa ser chamado de mesma pessoa ou de um eu idêntico? Como pode o homem ser 'para si mesmo' se ele sempre sente a si mesmo como diferente e se é conhecido como diferente de momento a momento no tempo? O que é o homem afinal, se nada mais é do que uma vítima da sucessão e da mudança temporais? O que perdura - se algo perdura - através do fluxo sempre mutável de consciência do indivíduo? Por conseguinte, a pergunta 'o que é o homem' reporta-se à pergunta 'o que é o tempo'. A busca de um conhecimento do eu leva à recherche du temps perdu. E quanto mais seriamente os seres humanos se engajam nessa busca, mais se tornam preocupados e envolvidos com a consciência do tempo e seu significado para a vida humana."

(O tempo na literatura, Hans Meyerhoff)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Música inesperada



domingo, 2 de janeiro de 2011

O Poder do Mito

Acabei de reler O Poder do Mito, livro que resultou do encontro entre Joseph Campbell e o jornalista Bill Moyers, em formato de série para a tv.
Apaixonado e grande estudioso de mitologia, Campbell nos ajuda a repensar nossa própria existência em termos mitológicos, a partir de histórias arquetípicas e temas universais, alcançando a compreensão última de que não existe sentido para a vida além da própria vida, a grande e misteriosa experiência de estar vivo.

"Eu penso na mitologia como a pátria das Musas, as inspiradoreas da arte, as inspiradoras da poesia. Encarar a vida como um poema, e a você mesmo como participante de um poema, é o que o mito faz por você. Quer dizer, um vocabulário, não de palavras, mas de atos e aventuras, que conota algo transcendente à ação localizada, de modo que você se sinta sempre em acordo com o ser universal."

"[A ideia de reencarnação] Sugere que você é mais do que pensa. Existem dimensões do seu próprio ser e um potencial de realizações e ampliação da consciência que não estão incluídos no conceito que você faz de si mesmo. Sua vida é mais profunda do que você a concebe, aqui. O que você está vivendo é só uma fração infinitesimal daquilo que realmente se abriga no seu interior, aquilo que lhe dá vida, alento e profundidade. E você pode viver em termos dessa profundidade, e quando chega a essa experiência, você percebe, instantaneamente, que é disso que falam todas as religiões."

"Você normalmente pensa nas coisas em termos práticos, mas poderia pensar em qualquer coisa em termos de mistério. Pense em como é misterioso que alguma coisa possa ser."

"A eternidade não é um tempo vindouro. Não é sequer um tempo de longa duração. Eternidade não tem nada a ver com tempo. Eternidade é aquela dimensão do aqui e agora que todo pensar em termos temporais elimina. Se você não a atingir aqui, não vai atingi-la em parte alguma. O problema com o Paraíso é que você vai ter uma vida tão boa, lá, que sequer vai pensar em eternidade. Você vai simplesmente experimentar o interminável deleite, na visão beatífica de Deus. Mas experimentar a eternidade aqui mesmo e agora, em todas as coisas, não importa se encaradas como boas ou más, esta é a função da vida."

"Ora, esse fundamento último de todos os seres pode ser experimentado em dois sentidos, um em que há forma e outro que não contém forma ou a excede. Quando você experimenta seu deus como forma, há a sua mente, que contempla, e há o deus. Há um sujeito e um objeto. Mas o objetivo místico final é unir-se a deus. Com isso, a dualidade é superada e as formas desaparecem. Não há ninguém, nem deus, nem você. Sua mente, ultrapassando todos os conceitos, dissolveu-se na identifcação com o fundamento de seu próprio ser, porque aquilo a que se refere a imagem metafórica de seu deus é o mistério último do seu próprio ser, o qual é também o mistério do ser do mundo."

"Toda referência espiritual derradeira é ao silêncio para além do som."