segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Água Viva

(Clarice Lispector)

Meus dias são um só clímax: vivo à beira.

Assim como me lanço no traço de meu desenho, este é um exercício de vida sem planejamento. O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer.

Quero lonjuras. Minha selvagem intuição de mim mesma. Mas o meu principal está sempre escondido. Sou implícita. E quando vou me explicitar perco a úmida intimidade.

Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários. Para onde vou? e a resposta é: vou.

E nada planejo no meu trabalho intuitivo de viver: trabalho com o indireto, o informal e o imprevisto.

Quanto à música, depois de tocada para onde ela vai? Música só tem de concreto o instrumento. Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical. Mas ainda mais atrás há o coração batendo. Assim o mais profundo pensamento é um coração batendo.

Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixamente por uns instantes. Tais momentos são meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade.

Mesmo para os descrentes há o instante do desespero que é divino: a ausência de Deus é um ato de religião.

A coragem de viver: deixo oculto o que precisa ser oculto e precisa irradiar-se em segredo.

O que me guia apenas é um senso de descoberta. Atrás do atrás do pensamento.

Todas as vidas são vidas heróicas.

Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser: eis os limites de minha possibilidade.

Antes de me organizar, tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me.

Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas - nunca o ato de entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. E quem sou eu para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei porém que só andando é que se sabe andar e - milagre - se anda.

Para cada um de nós e - em algum momento perdido na vida - anuncia-se uma missão a cumprir? Recuso-me porém a qualquer missão. Não cumpro nada: apenas vivo.

Eu não tenho enredo de vida? sou inopinadamente fragmentária. Sou aos poucos. Minha história é viver. E não tenho medo do fracasso. Que o fracasso me aniquile, quero a glória de cair.

Cada um de nós é um símbolo que lida com símbolos - tudo ponto de apenas referência ao real. Procuramos desesperadamente encontrar um identidade própria e a identidade do real. E se nos entendemos através do símbolo é porque temos os mesmos símbolos e a mesma experiência da coisa em si: mas a realidade não tem sinônimos.

Estou me encontrando comigo mesma: é mortal porque só a morte me conclui. Mas eu aguento até o fim. Vou lhe contar um segredo: a vida é mortal.

O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe e existe o mundo. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão leve. É uma lucidez de quem não precisa mais adivinhar: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não me pergunte o quê, porque só posso responder do mesmo modo: sabe-se.

Essa beatitude não é em si leiga ou religiosa. E tudo isso não implica necessariamente no problema da existência ou não-existência de um Deus. Estou falando é que o pensamento do homem e o modo como esse pensar-sentir pode chegar a um grau extremo de incomunicabilidade - que, sem sofisma ou paradoxo, é ao mesmo tempo, para esse homem, o ponto de comunicabilidade maior. Ele se comunica com ele mesmo.

Tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Conversa entre amigos

Hoje de manhã, encontrei por acaso meu amigo Vinícius na ciclovia. Paramos um pouco para conversar. Pelo modo como nós costumamos conversar, hoje percebi que, na verdade, parece que nós sempre temos uma única, longa conversa, retomada toda vez que nos encontramos. Em geral, falamos sobre a vida, filosofia, filmes, livros...
Hoje não foi diferente. Japamala, meditação, iniciação, tempo e a falta de tempo; Comer, rezar, amar, O poder do mito (preciso devolver o seu livro), O tempo na literatura, Mr. Nobody e, de novo, o tempo. Afinal qual é a do Mr. Nobody? A luta pela escolha de uma possibilidade ou a vivência simultânea de todas as possibilidades? Você entende, eu não. "Mas é um filme bonito". O Jared Leto é bonito.
Além da vida, A origem, O último mestre do ar, o desenho Avatar (se um dia eu tiver um filho...).
Simplesmente amor (se eu já vi Simplesmente Amor?!), Três vezes amor, Coincidências do amor (ou o amor vende filme ou é muita falta de criatividade dos tradutores...).
E por falar em amor, Apenas o fim. Comecei a ver por acaso, zapeando na tevê. Amei. É daqueles filmes que a gente assiste com um sorriso no rosto, sem perceber. Conversas sobre o amor, McDonald's e fanta uva. Ao final, veio na minha cabeça sua voz dizendo "é o Antes do amanhecer brasileiro". É exatamente o tipo de filme que você me indicaria, mas indicou? Não lembrava. Foi você que falou desse filme? "Claro, é o Antes do amanhacer brasileiro!".
House, tema obrigatório, não foi discutido como de costume, mas não podia deixar de ser citado.
Autobiografia de um iogue (quando acabar o seu Bhavagad Gita, versão bíblia, me avisa pra eu emprestar). Os livros que a gente relê (afinal, por que a gente relê tanto, em vez de ler?).
Teve outros assuntos, mas não daria para escrever sobre tudo. Como a gente conseguiu falar tanta coisa em tão pouco tempo?
Engraçado eu querer publicar nossa conversa aqui (aliás, já, já vou pedir a sua devida autorização). Mas é que eu também percebi que esse blog não passa de uma longa e única conversa, e que, afinal, tudo é uma coisa só. Só posso dizer, que, de um modo que não consigo explicar, todas essas conversas me fazem bem e me apontam algum sentido.
Para encerrar, deixo aqui a indicação de Apenas o fim, filme que é também uma longa e prazerosa conversa.



(o filme está todo disponível no youtube)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A poesia da vida real

Um antigo cajueiro, um par de luvas esquecido atrás de livros, uma borboleta amarela pelas ruas, um nadador no mar, uma manhã entre amantes. Qualquer assunto, por mais trivial ou corriqueiro que seja, pode se transformar em tema de crônica.
Mais que uma experiência ou verdade fundamental, a leitura de crônicas parece antes sugerir uma sensação, ou diferentes sensações que se seguem e que, no conjunto, criam uma espécie de empatia e formam uma imagem quase nítida daquele que escreve. A cumplicidade na banalidade poética do cotidiano rende um amigo. Um dos meus melhores amigos é o Rubem Braga.

Há algum tempo, vinha seguindo uma dieta - nada rígida, é verdade - de duas crônicas por dia. Lidas, em geral, depois do almoço e antes da sesta sagrada. A ideia era deixar que a sensação provocada pela leitura homeopaticamente prescrita e digerida pudesse me acompanhar ao longo do dia. Saborear cada texto lentamente, como toda boa crônica merece. Mas na última semana, num ímpeto de gula, devorei o livro inteiro. A sensação final e cristalizada de beleza da vida real, em sua realidade mais cotidiana e prosaica - e talvez por isso mais poética -, compensou a imprudência.

Cada início de crônica é uma promessa:

No centro do dia cinzento, no meio da banal viagem, e nesse momento em que a custo equilibramos todos os motivos de agir e de cruzar os braços, de insistir e desesperar, e ficamos quietos, neutros e presos ao mais medíocre equilíbrio - foi então que aconteceu. (Visão)

E o fim pode trazer uma revelação inesperada:

Ouvi-me, pois, insensatos; ouvi-me a mim e não a essa infame e horrenda serra que a vós e a mim tanto azucrina. Vamos para a praia. E se o proprietário vier, se o banqueiro vier, se o governo vier, e perguntar com ferocidade: "estais loucos?" - nós responderemos: "Não, senhores, não estamos loucos; estamos na praia jogando peteca". E eles recuarão, pálidos e contrafeitos. (Manifesto)

Entre o início e o fim, a beleza:

Houve um momento, aquele momento em que a carne se faz alma. (Às duas horas da tarde de domingo)

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho? (Despedida)

Deixo aqui um aperitivo:

A Palavra
(Rubem Braga)

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento - e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven - e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído - talvez palavras de algum poeta antigo - foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O eu e o tempo

"O tempo é particularmente significante para o homem porque é inseparável do conceito do eu. Somos conscientes de nosso próprio crescimento orgânico e psicológico no tempo. O que chamamos eu, pessoa ou indivíduo, é experimentado e conhecido somente contra o fundo da sucessão de momentos e mudanças temporais que constituem sua biografia. Mas como é possível que aquilo que está sujeito a constante mutação possa ser chamado de mesma pessoa ou de um eu idêntico? Como pode o homem ser 'para si mesmo' se ele sempre sente a si mesmo como diferente e se é conhecido como diferente de momento a momento no tempo? O que é o homem afinal, se nada mais é do que uma vítima da sucessão e da mudança temporais? O que perdura - se algo perdura - através do fluxo sempre mutável de consciência do indivíduo? Por conseguinte, a pergunta 'o que é o homem' reporta-se à pergunta 'o que é o tempo'. A busca de um conhecimento do eu leva à recherche du temps perdu. E quanto mais seriamente os seres humanos se engajam nessa busca, mais se tornam preocupados e envolvidos com a consciência do tempo e seu significado para a vida humana."

(O tempo na literatura, Hans Meyerhoff)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Música inesperada



domingo, 2 de janeiro de 2011

O Poder do Mito

Acabei de reler O Poder do Mito, livro que resultou do encontro entre Joseph Campbell e o jornalista Bill Moyers, em formato de série para a tv.
Apaixonado e grande estudioso de mitologia, Campbell nos ajuda a repensar nossa própria existência em termos mitológicos, a partir de histórias arquetípicas e temas universais, alcançando a compreensão última de que não existe sentido para a vida além da própria vida, a grande e misteriosa experiência de estar vivo.

"Eu penso na mitologia como a pátria das Musas, as inspiradoreas da arte, as inspiradoras da poesia. Encarar a vida como um poema, e a você mesmo como participante de um poema, é o que o mito faz por você. Quer dizer, um vocabulário, não de palavras, mas de atos e aventuras, que conota algo transcendente à ação localizada, de modo que você se sinta sempre em acordo com o ser universal."

"[A ideia de reencarnação] Sugere que você é mais do que pensa. Existem dimensões do seu próprio ser e um potencial de realizações e ampliação da consciência que não estão incluídos no conceito que você faz de si mesmo. Sua vida é mais profunda do que você a concebe, aqui. O que você está vivendo é só uma fração infinitesimal daquilo que realmente se abriga no seu interior, aquilo que lhe dá vida, alento e profundidade. E você pode viver em termos dessa profundidade, e quando chega a essa experiência, você percebe, instantaneamente, que é disso que falam todas as religiões."

"Você normalmente pensa nas coisas em termos práticos, mas poderia pensar em qualquer coisa em termos de mistério. Pense em como é misterioso que alguma coisa possa ser."

"A eternidade não é um tempo vindouro. Não é sequer um tempo de longa duração. Eternidade não tem nada a ver com tempo. Eternidade é aquela dimensão do aqui e agora que todo pensar em termos temporais elimina. Se você não a atingir aqui, não vai atingi-la em parte alguma. O problema com o Paraíso é que você vai ter uma vida tão boa, lá, que sequer vai pensar em eternidade. Você vai simplesmente experimentar o interminável deleite, na visão beatífica de Deus. Mas experimentar a eternidade aqui mesmo e agora, em todas as coisas, não importa se encaradas como boas ou más, esta é a função da vida."

"Ora, esse fundamento último de todos os seres pode ser experimentado em dois sentidos, um em que há forma e outro que não contém forma ou a excede. Quando você experimenta seu deus como forma, há a sua mente, que contempla, e há o deus. Há um sujeito e um objeto. Mas o objetivo místico final é unir-se a deus. Com isso, a dualidade é superada e as formas desaparecem. Não há ninguém, nem deus, nem você. Sua mente, ultrapassando todos os conceitos, dissolveu-se na identifcação com o fundamento de seu próprio ser, porque aquilo a que se refere a imagem metafórica de seu deus é o mistério último do seu próprio ser, o qual é também o mistério do ser do mundo."

"Toda referência espiritual derradeira é ao silêncio para além do som."