segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O lobo da estepe

" - Você trazia no íntimo uma imagem da vida, uma fé, uma exigência; estava disposto a feitos, a sofrimentos e sacrifícios, e logo aos poucos notou que o mundo não lhe pedia nenhuma ação, nenhum sacrifício nem algo semelhante; que a vida não é nenhum poema épico, com rasgos de heróis e coisas parecidas, mas um salão burguês, no qual se vive inteiramente feliz com a comida e a bebida, o café e o tricô, o jogo de cartas e a música de rádio. E quem aspira a outra coisa e traz em si o heróico e o belo, a veneração pelos grandes poetas ou a veneração pelos santos, não passa de um louco ou de um Quixote. Pois bem, meu amigo, comigo também foi assim! Eu era uma jovem bem-dotada, com vocação para viver dentro de um elevado padrão, para esperar muito de mim mesma e para realizar grandes feitos. Poderia ter um belo futuro, ser a esposa de um rei, a amante de um revolucionário, a irmã de um gênio, a mãe de um mártir. E a vida só me permitiu ser uma cortesã de mediano bom gosto, o que já se vai tornando bastante difícil para mim! Foi isso o que me aconteceu. Fiquei algum tempo desconsolada e procurei com afinco a culpa em mim mesma. A vida, pensava eu, sempre acaba tendo razão, e se a vida se ria dos meus belos sonhos, pensava, era porque meus sonhos tinham sido estúpidos e irracionais. Mas isso não me valeu de nada. Mas como tivesse bons olhos e ouvidos, e, além disso, fosse curiosa, examinei a vida com certa atenção, observei meus vizinhos e conhecidos, mais de cinquenta pessoas e destinos, e percebi então, Harry, que meus sonhos estavam certos, estavam mil vezes certos, assim como os seus. Mas a vida, a realidade, não tinha razão. O fato de uma mulher da minha classe não ter alternativas senão envelhecer de uma maneira insensata e pobremente junto a uma máquina de escrever a serviço de um capitalista, ou casar-se com ele por seu dinheiro ou converter-se numa espécie de meretriz, era tão injusto quanto o de um homem como você, solitário, tímido e desesperado, ter de recorrer à navalha de barbear. Talvez a miséria em mim fosse mais material e moral, e em você mais espiritual; mas o caminho era o mesmo. Pensa que eu não pude reconhecer a sua angústia diante do foxtrote, sua repugnância pelos bares e pelos dancings, sua hostilidade para com a música de jazz e tudo o mais? Compreendia e muito bem, como compreendia seu horror pela política, sua tristeza pelo palavreado vão e a conduta irresponsável dos partidos e da imprensa; seu desespero diante da guerra, as passadas e as futuras; pela maneira como hoje se pensa, se lê, se edifica, se compõe música, se celebram as festas e se educa! Você tem razão, Lobo da Estepe, mil vezes razão, e contudo terá de perecer. Vive demasiadamente faminto e cheio de desejos para um mundo tão singelo, tão cômodo, que se contenta com tão pouco; para o mundo de hoje em dia, que lhe cospe em cima, você tem uma dimensão a mais. Quem quiser hoje viver e satisfazer-se com a vida, não pode ser uma pessoa assim como você e eu. Quem quiser música em vez de balbúrdia, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro trabalho em vez de exploração, verdadeira paixão em vez de jogo, não encontrará guarida neste belo mundo...
Olhou para baixo, meditando."

(O lobo da estepe, Hermann Hesse)

domingo, 20 de janeiro de 2013

Liberal Arts

"Ninguém se sente como um adulto. É o segredo do mundo."

(Peter Hoberg, em Liberal Arts, filme escrito, dirigido e estrelado por Josh Radnor)



terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Hunter S. Thompson por ele mesmo

Res Ipsa Loquitur. A coisa fala por si mesma. Este é o refrão. O medo é o fio condutor. O bizarro profissional, mas nada de paranoia. Com o perdão da obviedade, a única coisa que se compara à leitura da autobiografia de Hunter S. Thompson é ler o que quer que seja de Hunter S. Thompson - se é que tudo o que ele escreveu já não fosse autobiográfico. Res Ipsa Loquitur. No caso de "Reino do medo", a vida fala por si mesma. 

"Sou um músico confuso que perdeu o rumo nesse maldito negócio da Palavra por tanto tempo que me esqueci de retornar à música - a não ser, talvez, quando me encontro extraordinariamente sozinho num recinto silencioso com apenas uma máquina de escrever para tocar e saudade de escrever músicas. Vai saber por quê. Talvez eu apenas sinta vontade de cantar - então bato à máquina.
Essas ágeis teclas elétricas são ao mesmo tempo meu Instrumento, minha harpa, meu microfone RCA de válvula de vidro e meu sofisticado saxofone soprano. Essa é a minha música, para o bem e para o mal, e há noites em que ela faz com que eu me sinta um deus. Veni, Vidi, Vici... É aí que começa a diversão..
(...) Então quem sabe possamos considerar que meu trabalho é em parte (ou todo, às vezes) geneticamente governado por meus frustrantes fracassos musicais, que levaram a uma presunçosa sublimação de meus instintos musicais essenciais, que com certeza me perseguem de modo tão flagrante quanto dominam minhas letras de música."

"Sempre tive e ainda tenho a ambição de escrever ficção. Nunca tive nenhuma verdadeira ambição no jornalismo, mas os acontecimentos, o destino e meu próprio senso de diversão continuam me fazendo voltar por causa de dinheiro, de razões políticas, e também porque sou um guerreiro. Nunca encontrei uma droga que chegasse perto da piração de sentar numa mesa e ficar escrevendo, tentando imaginar uma história, não importa o quão bizarra seja, ou então de sair e penetrar na bizarrice da realidade, passando um tempinho na Estrada do Orgulho." (Março de 1990, entrevista a William Mckeen)

"É o aspecto mais desconcertante desse instável personagem. Como ele consegue? Passamos a noite bebendo sem parar. Está com a cabeça cheia de THC. De vez em quando, como um tamanduá, ele enterra o nariz e volta engasgando. Dunhills são consumidos ininterruptamente. Ele segue o horário de um vampiro que chupa o sangue dos maníacos por velocidade. E ainda assim... ainda assim, ele faz sentido. Para mim, faz mais sentido que qualquer outra pessoa escrevendo hoje, porque ele ENTENDE O QUE ESTÁ ACONTECENDO.
(...) 'Fiz a minha escolha há muito tempo', diz o doutor enquanto olha pela mira. 'Alguns dizem que sou um lagarto sem pulsação. A verdade é... Jesus, vai saber. Nunca achei que passaria dos vinte e sete. Todo dia, fico tão impressionado quanto os outros quando me dou conta de que ainda estou vivo.'
É possível que ele não saiba, mas duvido disso. Percebo, através do nevoeiro em meu próprio cérebro, que o dr. Thompson está numa espécie de estado de graça psicofisiológico, porque durante todos esses anos ele permaneceu fiel a si mesmo."
(Richard Stratton, High Times, agosto de 1991)

"É por isso que  venero Deus em segredo, amigos. Ele teve o bom senso de me deixar em paz para escrever sozinho algumas genuínas páginas em preto-e-branco, para variar."
(HST, setembro de 2002)

sábado, 12 de janeiro de 2013

As boas coisas da vida

Rubem Braga

Uma revista mais ou menos frívola pediu a várias pessoas para dizer "dez coisas que fazem a vida valer a pena". Sem pensar demasiado, fiz esta pequena lista:

- Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrafa cuja a rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: gosto de infância, de tarde na fazenda.

- Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir uma roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.

- Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para seu lado e, de repente, dar um chute perfeito - e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro.

- Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.

- Aquele momento que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade - ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.

- Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustração da carne - a mulher não te deu e não te dá, essa amaldiçoada.

- Viajar, partir….

- Voltar.

- Quando se vive na Europa, voltar para Paris; quando se vive no Brasil, voltar para o Rio.

- Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte - o assim chamado descanso eterno.

(Pequena homenagem ao centenário de nascimento de Rubem Braga, ele mesmo uma das melhores coisas da vida. Mais do grande cronista em "A poesia da vida real")

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Submarine

"Hoje à noite, me deparei com um texto sobre ultrassom. Ultrassom é uma vibração de alta frequência que é inaudível. Foi desenvolvido para localizar objetos submersos: submarinos, bombas de profundidade, Atlantis e tal. Alguns animais, como morcegos, golfinhos e cães podem ouvir na frequência ultrassônica. Mas nenhum ser humano pode. Ninguém realmente sabe o que alguém pensa ou sente. O que há dentro da minha mãe? O que há dentro do meu pai? O que há dentro de Jordana? Estamos todos viajando sob o radar, sem sermos detectados. E ninguém pode fazer nada a respeito." (Oliver Tate, em Submarine)



Mais lindo que o filme, só a trilha sonora do Alex Turner (Arctic Monkeys):



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O mar, o mar

"Então, reencontrar o grande amor da vida depois de tantos anos, era aquilo? E não havíamos sido as tímidas, francas e inocentes criaturas que certa vez havíamos sido um para o outro? A natureza de nossa conversa jamais fora corrompida, e, nessa desajeitada conversação, sua nota poderia ser inequivocamente ouvida outra vez. Talvez eu realmente pudesse, através dela e através de nosso antigo amor infantil, agora irremediavelmente casto, ser capaz de me tornar aquilo que desejei vir a ser quando vim para o mar - um puro de coração."
(O mar, o mar, Iris Murdoch)

(Fui arrastada para esse livro por dois motivos: primeiro, conhecer o trabalho da escritora e filósofa inglesa Iris Murdoch, belamente retratada em Iris, filme de 2001, estrelado por Kate Winslet e Judi Dench; e também pela história em si, a vida de Charles Arrowby, famoso diretor de teatro que abandona tudo para viver em paz e solidão perto do mar - uma espécie de Walden moderno, pensei. A surpresa (e, em parte, a decepção) foi encontrar uma história de reencontro com o primeiro amor - o patético da obsessão e a desilusão final como catarse pessoal inesperada).