quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Livro do Desassossego

(Fernando Pessoa)

A glória nocturna de ser grande não sendo nada!

Deus é o existirmos e isto não ser tudo.

Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.

Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das ideias, lendo, sonhando, e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para estar sempre à beira do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar nele. Viver essa vida longe das emoções e dos pensamentos, só no pensamento das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar, ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra, aquela fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida.

A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. Se quiser dizer que existo, direi "Sou". Se quiser dizer que existo como alma separada, direi "Sou eu". Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei-de empregar o verbo "ser" senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi "Sou-me".

Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção - isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.

Melhores, e mais felizes, os que, reconhecendo a ficção de tudo, fazem o romance antes que ele lhes seja feito.

Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são horas, vou até ao rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por detrás de isso, céu meu, constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito.

Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que blog maravilhoso!

Seguindo (:

Uma excelente quarta feira'

Bjs :*

Unknown disse...

Nossa Rose,
Adoro ler esse blog!
Esse post me remeteu às bases da motricidade humana.
Ciência que estuda o movimento humano, não como a biomecânica, mas levando em consideração a intencionalidade. O porque mover-se. E é tão bom sentir-se vivo e movendo-se!
Mas não só movimento físico, se é que isso é possível, mas sentir a vida movimentar-se.
Movo-me porque me sinto incompleto, porque sou incompleto e tenho necessidade de experimentar, aprender, correr riscos. Errar ou acertar é o que menos importa.
O ser para se reinventar, tem que mover-se.
O que não precisa de mudança, que já atingiu o que queria, já sabe tudo, cristalizou.
As possibilidades são infinitas e o rumo das nossas vidas não é decidido por onde queremos chegar, mas por quem vamos sendo e como vamos nos transformando.
Beijos