quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Coisas da Ética

Na última aula, estávamos tentando definir o que seria a tal da ética. Realmente, esta é uma daquelas coisas que a gente sente ou pensa que sabe o que é, mas não consegue definir. Aqui vai uma tentativa...
De um lado, a ética pode ser o conjunto de valores morais que regem o comportamento e a ação humana, e, de outro, a ciência, dentro da Filosofia, que estuda esses valores. Mas ainda está longe de ser somente isso. Falar em ética e não falar em conceitos como os de bem, liberdade, justiça, não é lá muito ético... Sem contar na discussão entre a universalidade ou particularidade dos valores éticos: seria a idéia de bem, por exemplo, universal e inerente a todo ser humano, ou cada indivíduo ou cultura desenvolve sua própria noção de bem? Pois é, a coisa é complicada...
Semestre passado, a gente estudou a ética através de Sócrates e Aristóteles. Sócrates foi o primeiro grande pensador a transferir as investigações filosóficas para o interior do próprio homem, dando um novo sentido ao "conhece-te a ti mesmo" do oráculo de Delphos. Sua ética, baseada no conhecimento de si mesmo, traduzia uma busca constante, aprimorada através da investigação filosófica e de uma vida virtuosa, tendo sempre como meta ou guia, a Idéia de Bem Supremo (pertencente, enquanto tal, não a este mundo, mas ao Mundo das Idéias ou das Formas Perfeitas). Aristóteles também pensa a ética a partir da noção de Bem Supremo, trazendo, no entanto, esta noção para o plano terreno e humano, e identificando-a com a felicidade. A ética seria o conjunto de ações morais que levam à realização do bem supremo, ou seja, à felicidade. O bem é aquilo que o homem pode atingir através de sua atividade prática e de seu comportamento virtuoso, fazendo uso da reta razão ou equilíbrio (o "caminho do meio" dos budistas...). Para Aristóteles, a finalidade - causa mais importante - é a felicidade, a transformação da potência em ato, isto é, o desenvolvimento pleno de todas as potencialidades humanas tendo em vista o bem.
Mas, afinal, o que é ser ético?
A professora Mariza apontou o desenvolvimento da ética como o caminho que vai do sujeito empírico ao sujeito ético, ou seja, do saber ao ser. Não basta conhecer o bem; é preciso viver o bem "em si", ser ético é viver plenamente os valores e atitudes éticas. Mas se ética implica ação, como agir? (calma, que a angústia sartreana só chega semana que vem...) Aqui entra a noção de liberdade. De modo geral, a ética só se justifica se existe a liberdade, pelo menos a de escolha, entre o bem e o mal, entre o agir certo e o errado (outra questão importante: a ética é sempre maniqueísta, ou seja, pautada pela oposição bem x mal?). Não faria sentido ter de escolher entre um coisa e outra (ou várias?) se todas as nossas ações já fossem determinadas de antemão. Mas será que somos realmente livres? Mesmo quando temos a tal da liberdade de pensamento ou a liberdade de escolha, somos material e politicamente livres? Se a gente pensar em algumas teorias da Filosofia da Linguagem ou estudos sobre a ideologia, por exemplo, pode levar um susto ao suspeitar que mesmo o pensamento, constituído de idéias e linguagem, não é tão livre assim... No plano concreto e material da existência, a liberdade chega a ser uma grande falácia, e das boas! É livre um cidadão que é obrigado a trabalhar de dez a doze horas por dia ganhando uma miséria, sem acesso aos meios de produção, sem oportunidade de desenvolver-se plenamente como indíviduo através da produção e fruição da cultura e lazer, e sem possibilidade de participação política plena e consciente? É claro e perfeitamente aceitável que da minha poltrona aquecida, acompanhada de café e livros de filosofia, eu me considere totalmente livre...
Pensando na indústria cultural, seus defensores alegam a maior quantidade de opções como algo positivo... nesse caso, a liberdade se resumiria a escolher entre um produto e outro. Em uma passagem do filme "Mensagem pra você", Joe Fox, personagem de Tom Hanks, diz que adora um lugar como a cafeteria Starbucks, porque com a possibilidade de escolher entre café preto, com leite, descafeinado, cappucino, grande ou pequeno, um indivíduo, que nunca tem chance de escolher nada, se sente preenchido não apenas por um sentimento de liberdade, como também por um senso de identidade! Pois é... ética: à venda nos melhores mercados...
Costuma-se dizer que "a minha liberdade termina onde começa a do outro". Mas como diria o Mario Sergio Cortella, um educador e filósofo brasileiro que eu admiro muito, "a minha liberdade termina onde termina a do outro", ou seja, se há um homem que não é livre, eu também não sou.
No entanto, também há filósofos que acreditam na liberdade... Sartre, por exemplo. Mas nem tudo são flores... Se Deus já não existe, se nada é determinado, e eu sou um ser praticamente jogado no mundo e impelido a agir, todas as minhas escolhas e ações, pautadas pela minha liberdade total, ganham um peso e uma responsabilidade imensas do ponto de vista da existência. Diante de tanta responsabilidade, o que fazer e como agir? Eis a angústia sartreana (não agüentei esperar até a semana que vem...).
"Não importa o que fizeram de mim, mas o que eu faço com o que fizeram de mim.". Parece frase tirada de livro de auto-ajuda, mas é de Sartre. Respondendo, talvez, às críticas marxistas que lhe foram direcionadas, ele diria que não nega as determinações sociais, culturais, econômicas, políticas e ideológicas que restringem a ação dos homens, mas que acredita na força maior dessa tal liberdade humana...
Haja determinação! (com o perdão da ambigüidade...)
Só faltava cantar o samba-enredo de 1989 da Imperatriz Leopoldinense:

Liberdade, liberdade!
Abra as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz

Ou perceber os três quartos de sonho e um quarto de realidade desse canto...

Mas nem tudo está perdido! Alto lá! A gente pode assumir, sim, a liberdade como premissa fundamental (não necessariamente real) do nosso agir para tentar mudar alguma coisa. Porque se a gente ficar se considerando perdido numa caixa escura sem saber ou ter como sair, acaba não fazendo nada. Se a intenção é transformar, entre não acreditar em nada ou acreditar em alguma coisa, que seja alguma coisa. Melhor pecar pelo excesso... Pequemos, então.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Início de conversa

Pra início de conversa. Apesar da curiosidade, nunca tive disposição para escrever um blog. A idéia de falar da minha vida ou do que aconteceu no meu dia ou qualquer um dos infinitos assuntos que podem ser tratados em blogs nunca me seduziu o bastante para eu superar minha resistência e preguiça. Mas eis que surge um projeto interessante. A professora de Filosofia pediu que a gente fizesse um "caderno criativo" (nome sonoro, sugere mais escrita de poesia...), contendo anotações, alusões, idéias, devaneios, tudo o que os temas tratados em sala possam suscitar em nossa mente. Agora, sim. Um blog pode ser uma boa idéia!

A disciplina. Este próximo semestre promete. A gente vai estudar Kant, Nietzsche, Sartre e a Escola de Frankfurt. Minha empolgação não poderia ser maior! Sempre quis conhecer bem a obra de Kant , mesmo que inicialmente por motivos secundários... Um outro filósofo de que eu gosto bastante chamado Ernest Cassirer desenvolveu grande parte de seu trabalho a partir das idéias de Kant...
Nietzsche... só o nome já sugere o inesperado. Sempre tive receio de estudá-lo pois acredito que uma má compreensão de sua obra, de uma frase sua sequer, pode ter conseqüências devassas para um espírito desatento. Mas agora é chegada a hora!
Já Sartre chega quase a ser o alter-ego da maioria dos adolescentes em crise entrando na idade adulta, período em que a verdade do "inferno são os outros" chega a doer. Acredito em fases existencialistas da vida. Identificação pura. Agora meu interesse no Existencialismo é mais desprendido. Além disso, literatura existencialista é sempre um prato cheio pra quem gosta de ler. Os contos do próprio Sartre, as "Memórias de uma moça bem comportada", da Simone de Beauvoir (não adianta esperar por ironia no título... ela era de fato uma moça bem comportada!), "O Estrangeiro", de Camus, "Aparição", de Vergílio Ferreira (um escritor português fantástico), Camilo José Cela (espanhol) e tantas outras coisas boas, são de encher a alma de idéias desnorteantes. E quem quer as idéias normais?
Por fim, a Escola de Frankfurt. Essa é parte barra pesada do curso. Imprescindível, principalmente pra quem está na área de Comunicação, mas precisa ter coragem. De entrar e conseguir sair ileso. O risco de se tornar um pessimista totalmente desiludido com a vida é grande. Em meio ao Apocalipse, a única solução possível é saltar do décimo quarto andar, como disse o João Batista. Consciência crítica, sim. Pessimismo, não. Adorno certa vez disse que depois de Auschivitz, nenhum poema fazia sentido. Pois é nessas horas que a poesia (e a arte em geral) se faz mais necessária. A vida não pode ser só isso. A vida é mais. A Vida é maior que a própria vida.

A aula de ontem. A professora Mariza Galvão pediu que a gente analisasse a música "Novo Tempo", do Ivan Lins.

No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos crescidos, estamos atentos
Estamos mais vivos pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
Da força mais bruta, da noite que assusta
Estamos na luta pra sobreviver
Pra que nossa esperança
Seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho que se deixa de herança
No novo tempo, apesar dos castigos
De toda fadiga, de toda injustiça
Estamos na briga pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
De todos os pecados, de todos enganos
Estamos marcados pra sobreviver
No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos em cena, estamos nas ruas
Quebrando as algemas pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
A gente se encontra cantando na praça
Fazendo pirraça pra sobreviver

"Estamos marcados pra sobreviver"... Apesar de todas as coisas ruins do mundo, de todas as coisas ruins que nos acontecem, a gente tem que seguir. Seja a obrigação de sobrevivência (e, nesse caso, dá pra se perguntar, "pra quê, afinal?"), seja o vislumbre de alguma esperança que ainda pode iluminar o caminho, a verdade é que a vida continua. E, com o perdão dos suicidas, com ou sem a gente.
"Estamos em cena"... A bola tá com a gente e a gente tem que jogar. Não dá mais pra ficar se fazendo de bobo ou esperar a banda passar. Mas fala-se muito em culpa. De quem é a culpa afinal? É nossa? Do governo? Do sistema? De Deus? Desde o obscurantismo da Idade Média, a idéia de crime e castigo não tem produzido nada de muito profícuo. Fazer se aprende fazendo, como dizem por aí. A consciência crítica poderia ser até noventa por cento da solução, mas não adianta nada ficar só apontando o dedo.
Pensando no contexto da ditadura militar no Brasil, em que a letra dessa música se encaixa perfeitamente, o inimigo estava ali, declarado, e a gente sabia contra quem lutar. Hoje a música continua fazendo sentido, mas o inimigo já não é tão óbvio. A gente luta, quando luta, sem saber com quem está lutando. A coisa tá dura, mas a gente tem que sobreviver. De fato, como a professora falou, o inimigo é a Ideologia. Todas as falsas idéias que a gente vive, ou melhor, que vive a vida por nós e faz a gente achar que tá vivendo. Mas, como cantaria Chico Buarque, em outra canção que faz também referência ao regime militar, "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia!". Apesar de o nosso "você" de hoje ser outro, amanhã continuará sendo outro dia.

Hoje você é quem manda.
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão.
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia?
Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando e a gente se amando sem parar
Quando chegar o momento esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido, esse grito contido,
Esse samba no escuro.
Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza de “desinventar”.
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada nesse meu penar
Apesar de vocêAmanhã há de ser outro dia
Ainda pago pra ver o jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver a manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente, impunemente?
Como vai abafar nosso coro a cantar
Na sua frente?

Lembrei também do poema "A Flor e a Náusea", de Drummond, escrito na época da Segunda Guerra Mundial e da ascensão do nazismo:

Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


Pois é! O mundo parece ser o mesmo. As dores são as mesmas. Mas, apesar de tudo, ainda há flores. E só pra terminar esse jogo de pesar e de apesares, tem uma frase de um dos meus filmes favoritos, "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", que, apesar (mais um!) do otimismo que pode parecer ingênuo, é tão verdadeira pra mim quanto o ar que eu respiro:

"C'est beau la vie, encore même!" (A vida é bela, apesar de tudo!)