segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Só o Amor

Como na passagem do ano a gente não se furta à tentação de fazer pedidos e renovar desejos - e é bom que seja assim pois todo ciclo que se encerra dando início a outro inspira o anseio por transformações -, deixo aqui registrado o meu desejo para o próximo ano, e o próximo e o próximo...: Amor!
Em Problemas do Homem Contemporâneo (PHC), o professor Ricardo Galvanese deu, um dia, uma aula brilhante e inspiradora sobre o Amor - Amor como meta máxima, como ápice da vida ética, emocional e espiritual do ser humano (e embora a humanidade já esteja condenada (!), insisto em acreditar na capacidade humana de amar). Só está pronto para amar, dizia o professor, quem tem maturidade emocional e é capaz de se reconhecer a si mesmo como um ser inteiro e pleno e de reconhecer no outro o outro, com suas idiossincrasias e como um ser completo em si mesmo e não como uma projeção ilusória de nós mesmos. Também falou sobre os três tipos de Amor: a Paixão (Eros), o necessitar do outro (atração); a Amizade (Philia), o alegrar-se com o outro (regozijo); e a Caridade (Ágape), o querer o bem do outro (incondicionalidade). O Amor perfeito e verdadeiro - o Sublime Amor - seria aquele que consegue unir essas três formas de amor. Ai, ai... suspiros de esperança... (não é à toa que estou escrevendo em véspera de ano novo!)
André Comte-Sponville, no seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, considera o Amor como a maior das virtudes, aquela para a qual todas as outras tendem. Depois vou colocar algum trecho dele aqui (o capítulo sobre o Amor é um pouco longo, mas vale a pena...).
E por falar em Amor, lembrei da canção Monte Castelo, do Renato Russo, inspirada em um poema de Camões e em uma carta de São Paulo aos Coríntios:

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.

O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

É um não querer mais que bem querer.
É solitário andar por entre a gente.
É um não contentar-se de contente.
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrário a si é o mesmo amor.

Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.


segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Debaixo d'água

Debaixo d' água tudo era mais bonito
Mais azul mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água se formando como um feto
Sereno confortável amado completo
Sem chão sem teto sem contato com o ar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Debaixo d'água por encanto sem sorriso e sem pranto
Sem lamento e sem saber o quanto
Esse momento poderia durar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água ficaria para sempre
Ficaria contente
Longe de toda gente para sempre
No fundo do mar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Debaixo d'água protegido salvo fora de perigo
Aliviado sem perdão e sem pecado
Sem fome sem frio sem medo sem vontade de voltar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água tudo era mais bonito
Mais azul mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia

Agora
Agora que a agora é nunca
Agora posso recuar
Agora sinto minha tumba
Agora o peito a retumbar
Agora a última resposta
Agora quartos de hospitais
Agora abrem uma porta
Agora não se chora mais
Agora a chuva evapora
Agora ainda não choveu
Agora tenho mais memória
Agora tenho o que foi meu
Agora passa a paisagem
Agora não me despedi
Agora compro uma passagem
Agora ainda estou daqui
Agora sinto muita sede
Agora já é madrugada
Agora diante da parede
Agora falta uma palavra
Agora o vento no cabelo
Agora toda minha roupa
Agora volta pro novelo
Agora a língua em minha boca
Agora meu avô já vive
Agora meu filho nasceu
Agora o filho que não tive
Agora a criança sou eu
Agora sinto um gosto doce
Agora vejo a cor azul
Agora a mão de quem me trouxe
Agora é só meu corpo nu
Agora eu nasço lá de fora
Agora minha mãe é o ar
Agora eu vivo na barriga
Agora eu brigo pra voltar
Agora
Agora

(Arnaldo Antunes e Titãs, na voz de Maria Bethânia in 'Mar de Sophia')

domingo, 23 de dezembro de 2007

O vazio da xícara (porque para Ser é preciso deixar de ser...)

É quando a roda pára que vem a náusea
(Poema de Rafaelle Donzalisky)

Eu queimo as revistas, e mesmo assim me perseguem os anúncios; produtos pra queimar a gordurinha que não vejo na modelo que o anuncia,
Eu prefiro a ferida a tal remédio!
Prefiro a dor ao tédio,
A engolir a seco o sapos cururus e as gias do brejo do vizinho , sim ,
lá tem lugar de sobra. No meu, as vacas pastam.
E sempre sobram sapos que não são meus pra empurrar goela abaixo.
Prefiro a tese, oras, a contradição, pois até a pluma leve às vezes toca ao chão.
Que a terra se exploda em cacos! [mesmo assim haverá vida nos estilhaços].
Quero encontrar vestígios de vida num copo quebrado com o meu grito de euforia ou desabafo!Quero ir até o fundo!
Beber a última gota da sopa que alimenta o vagabundo
Quero ir até o fundo!
E ver minha cara nas poças da avenida.
Quero ir até o fundo!
Mas no fundo, não há fundo se a xícara está vazia!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O peso e a leveza

Na última publicação, mencionei A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. É um romance que narra a existência de quatro pessoas tendo como pano de fundo a invasão russa da antiga Tcheco-Eslováquia e a dureza do regime comunista lá imposto. Pensei mais sobre este livro, porque ele começa falando justamente de Nietzsche para fundamentar a oposição entre leveza e peso que permeia todo o romance. Eis o início:

O eterno retorno é uma idéia misteriosa, e Nietzsche, com essa idéia, colocou muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?
O mito do eterno retorno nos diz, por negação, que a vida vai desaparecer de uma vez por todas, e que não mais voltará, é semelhante a uma sombra, que ela é sem peso, que está morta desde hoje, e que, por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor, não têm o menor sentido. Essa vida não deve ser considerada mais importante do que uma guerra entre dois reinos africanos do século XIV, que não alterou em nada a face do mundo, embora trezentos mil negros tenham encontrado nela a morte através de indescritíveis suplícios.
Será que essa guerra entre dois reinos africanos do século XIV se modifica pelo fato de se repetir um número incalculável de vezes no eterno retorno?
(...)
Se cada segundo de nossa vida deve se repetir um número infinito de vezes, estamos pregados na eternidade como Cristo na cruz. Que idéia atroz! No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma insustentável leveza. Isso é o que fazia com Nietzsche dissesse que a idéia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos.
Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, nossas vidas, sobre esse pano de fundo, podem aparecer em toda a sua esplêndida leveza.
Mas, na verdade, será atroz o peso e bela a leveza?
O mais pesado fardo nos amarga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira.
Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.
Então, o que escolher? O peso ou a leveza?
Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. Segundo ele, o universo está dividido em duplas de contrários: a luz e a obscuridade, o grosso e o fino, o quente e o frio, o ser e o não-ser. Ele considerava que um dos pólos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser), o outro, negativo. Essa divisão em pólos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Menos em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza?
Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado negativo. Teria ou não razão: Essa é a questão. Uma coisa é certa. A contradição pesado-leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Produtos e produtos

Último trabalho do ano: discorrer sobre o tema "Sou um produto da indústria cultural mas não sou um produto da indústria cultural". A disciplina é Teorias da Comunicação. Não é Filosofia, mas é filosofia...

Indústria cultural é o sistema produtivo presente em todas as sociedades industrializadas modernas que, seguindo o modelo industrial de produção, transforma os elementos da cultura em produtos, procurando gerar produção em larga escala para o maior número de pessoas possível. Caracteriza-se, portanto, pela massificação e padronização dos bens culturais (dando origem, assim, à cultura de massa) e pela criação e, de certa forma, imposição de valores que estimulam o consumo. O consumismo, por sua vez, torna-se um valor em si, que passa a guiar e dar um sentido à vida das pessoas: a posse como valor existencial máximo, em que o ser é substituído pelo ter.
A indústria cultural, assim definida, embora tenha sido impulsionada pela Revolução Industrial no século XIX, consolidou-se no século XX com o surgimento (de novos) e fortalecimento (dos já existentes) meios de comunicação de massa. Atualmente, vivemos inseridos no sistema capitalista que impõe um modelo de globalização neoliberal, e mesmo os países considerados industrializados porém não capitalistas seguem este modelo (ainda que somente por via de efeitos indiretos). Portanto, o universo da cultura acaba sendo atingido, ou melhor, está também inserido nesta esfera globalizada.
Se pensarmos na divisão de Marx entre estrutura e superestrutura, podemos dizer que somos diretamente afetados pela indústria cultural em ambas as instâncias da organização social. Neste sentido, podemos afirmar que somos um produto direto da indústria cultural. No âmbito da produção, vivendo em uma sociedade industrializada, é praticamente impossível não fazer parte ao menos do processo final da industrialização, que é o consumo. Quando compramos um jornal, lemos um livro, ouvimos um cd ou vamos ao cinema, estamos participando e ativando os dispositivos da indústria cultual, mesmo sem se dar conta disto. Por outro lado, no âmbito dos produtos (considerando-se, principalmente, os conteúdos culturais), acabamos absorvendo e vivenciando valores que, por meio da cultura, tornam-se “naturais” e, portanto, perfeitamente aceitáveis. É neste âmbito que a atuação da indústria cultural, através da ideologia, realiza-se de modo mais intenso e mais perigoso. Embora seja um conjunto de abstrações – ou exatamente por isso –, a ideologia dominante gerada pela indústria cultual cria um modo de viver e pensar a realidade que passa a ser aceito pela grande maioria das pessoas de forma passiva e sem questionamento. É como a mão aceitando a luva que lhe dão. O problema maior é que, hoje, a luva é do tamanho do mundo, e já somos vestidos no momento em que nascemos. Como viver fora dos valores da indústria cultural?
No entanto, a constatação e a consciência crítica desta realidade social e existencial que vivemos podem transformar-se em um olhar que, mesmo encerrado no sistema imposto pela indústria cultural, abra perspectivas de questionamento e atuação. É neste sentido que podemos dizer que não somos um produto da indústria cultural. Na medida em que temos o poder de escolha e exercemos conscientemente este poder, deixamos de ser simples marionetes nas mãos da grande abstração chamada sistema para nos tornar seres responsáveis pela nossa existência e por nossas escolhas, ainda que inseridas no contexto maior da indústria cultural (isto significa que talvez nossas opções estejam limitadas a escolher entre um produto e outro). Conhecer a realidade e o funcionamento desta indústria e buscar novas formas alternativas de criar e agir dentro dela, ou apesar dela, são os modos possíveis de não vivermos apenas como mais um de seus produtos.

***

Lendo A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, e 1984, de George Orwell, percebi que talvez as coisas ainda pudessem ser bem piores... e que as discussões com o JB (João Batista, o professor-filósofo das Teorias da Comunicação) ganharam novos sentidos...

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Otimismo kantiano?

Em Idéia de uma história universal sob o ponto de vista cosmopolita, Kant apresenta a proposta de escrever uma história filosófica a partir de um questionamento e uma investigação central: a tentativa de descoberta das leis naturais universais que, embora sem serem totalmente conhecidas, guiam as ações do homem, de modo a realizar o propósito da natureza.
Segundo Kant, as ações humanas são regidas por leis universais impostas pela natureza que procura, através do fio condutor da razão, alcançar seu propósito: o bem, como a realização máxima de todas as disposições naturais humanas. A natureza dotou o homem com a razão e espera dele, por meio do uso racional de suas capacidades, o desenvolvimento de suas potencialidades, que levaria a humanidade a um grau de "máxima rudeza à máxima destreza e à perfeição interna do modo de pensar e, mediante isso, à felicidade."
Para conseguir atingir seu fim, a natureza faz uso do antagonismo inerente ao homem, representado pelas tendências opostas de associar-se e isolar-se - é a chamada "insociável sociabilidade", ou seja, a necessidade que o homem tem de viver em grupo e, ao mesmo tempo, assegurar seus próprios interesses. Apesar de seus traços negativos, Kant vê nesta oposição uma força propulsora que impulsiona o homem a superar a si mesmo. O antagonismo é, portanto, um dos instrumentos utilizados pela natureza para alcançar seu propósito, pois se os homens vivessem em perfeita harmonia, "de tão boa índole como as ovelhas que apascentam", não seriam impelidos a desenvolverem suas disposições naturais. Assim, a intratabilidade da natureza é necessária para a evolução moral e racional da espécie humana, uma vez que é através do conflito e da tensão de forças opostas que o homem tende ao bem.
Neste sentido, Kant vê também as guerras como algo necessário para o propósito da natureza, já que elas representam uma tentativa de criar novas relações entre os Estados. A natureza, em sua intratabilidade, serve-se de todos os meios para atingir seu fim.
Outro aspecto ditado pela natureza é a necessidade que os homens têm de um senhor, para limitar sua liberdade e instaurar uma vontade universalmente válida, ou seja, o bem comum. Este senhor ou chefe supremo deveria ser o representante máximo da justiça entre os homens, responsável por conduzir a humanidade para o bem maior. Para Kant, o líder perfeito depende de uma constituição civil perfeita, que por sua vez depende de uma melhor relação entre os Estados. Estes, refletindo o antagonismo próprio dos homens, também se opõem uns aos outros, mas, em sua evolução, dariam origem a um Estado universal.
A oitava proposição de Kant resume sua concepção:

"Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto, como a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política perfeita internamente e, quanto a este fim, também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas disposições."

Embora Kant prevesse tal evolução da humanidade para tempos ainda longínquos e indeterminados, hoje, alguns séculos após seus escritos filosóficos, ainda não podemos vislumbrar, nem mesmo ao longe, a realização de um Estado universal e de todas as disposições humanas. Se considerarmos a visão evolucionista da história segundo Kant, ainda estamos na fase em que a intratabilidade da natureza não produziu seus frutos positivos e reconciliadores. A realização do grande propósito da natureza exige "conceitos exatos da natureza de uma constituição possível, grande experiência adquirida através dos acontecimentos do mundo e, acima de tudo, uma boa vontade predisposta a aceitar essa constituição." No atual estágio da humanidade, parece que nenhuma destas exigências está perto de ser satisfeita.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Genealogia da Moral

" - Alguém quer descer o olhar sobre o segredo de como se fabricam ideais na terra? Quem tem a coragem para isso?..."

O desafio e a provocação de Nietzsche instigam a curiosidade e não desapontam as expectativas depois da leitura. Colocar todas as idéias (especialmente aquelas que consideramos as "nossas" idéias) no liquidificador, e depois de bem mexidas e batidas, sair com algo completamente... incompreensível. Não exatamente sobre Nietzsche (se bem que nada fica ou é claro e óbvio com ele), mas sobre o que pensamos (ou achamos que pensamos) e sobre nós mesmos. Perder o instinto de rebanho será o início da redenção?

***

Nietzsche apresenta uma genealogia da moral a partir de suas raízes históricas, procurando definir os conceitos e a origem de "bem" e "mal". Nega inicialmente a associação entre "bom" e ações não egoístas ou a utilidade das ações. Para ele, a origem de bem está na classe que o determina:

"(...) o juízo 'bom' não provém daqueles aos quais se fez o 'bem'! Foram os 'bons' mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu."

Um outro caminho para iluminar o estudo sobre a origem do bem está na própria linguagem. E mais uma vez, Nietzsche enfatiza as determinações de classe, seja pelo "direito" dos nobres de criar conceitos e dar nomes às coisas - "eles dizem 'isto é isto', marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas" - seja pela própria etimologia da palavra:

"(...) em toda parte, 'nobre', 'aristocrático', no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu 'bom', no sentido de 'espiritualmente nobre', 'aristocrático', de 'espiritualmente bem-nascido', 'espiritualmente privilegiado': um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz 'plebeu', 'comum', 'baixo' transmutar-se finalmente em 'ruim'."

Seguindo a regra de que "o conceito denotador de preeminência política sempre resulta em um conceito de preeminência espiritual", com os sacerdotes, a casta mais elevada socialmente, a oposição puro x impuro passou a designar a distinção de castas. O confronto entre a casta dos sacerdotes (representada pelos judeus) e a dos guerreiros (a nobreza) levou a uma inversão radical de valores: o bom passou a designar não mais o nobre, mas o seu oposto: o miserável:

"os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança - mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também os eternamente os desventurados, malditos e danados!..."

Assim, com os sacerdotes judeus, a partir desta inversão e da imposição de um novo conceito de "bem", teve início a "revolta dos escravos na moral":

" - A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um 'fora', um 'outro', um 'não-eu' - e este Não é seu ato criador."

Ao contrário do nobre, que define a partir de si mesmo a noção de bem, e, então, por oposição, a noção de mau, o homem do ressentimento (o "escravo") define inicialmente o "mau", como o inimigo ao qual devota ódio, e, então, elabora a idéia de "bom".
Partindo desta oposição entre moral nobre e moral escrava, Nietzsche condena esta última como aquela que deu origem à moral cristã, fundamentada, essencialmente, no apequenamento do homem, através da disseminação e introjeção das idéias de culpa (a "má consciência"), castigo e fraqueza humana.

" - 'Eu nada vejo, mas por isso ouço muito bem. É um cochichar e sussurar cauteloso, sonso, manso, vindo de todos os cantos e quinas. Parece-me que mentem; uma suavidade visguenta escorre de cada som. A fraqueza é mentirosamente mudada em mérito, não há dúvida - é como você disse" -
- Prossiga!
-'e a impotência que não acerta contas é mudada em 'bondade'; a baixeza medrosa, em 'humildade'; a submissão àqueles que se odeia em 'obediência' (há alguém que dizem impor esta submissão - chamam-no Deus). O que há de inofensivo no fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar-na-porta, seu inevitável ter-de-esperar, recebe aqui o bom nome de 'paciência', chama-se também a virtude; o não poder-vingar-se chama-se não-querer-vingar-se, talvez mesmo perdão ('pois eles não sabem o quem fazem - somente nós sabemos o que eles fazem!'). Falam também do 'amor aos inimigos' - e suam ao falar disso."
(...)
- E como chamam aquilo que lhes serve de consolo por todo o sofrimento da vida? - sua fantasmagoria da bem-aventurança futura antecipada?
- 'Quê? Estou ouvindo bem? A isto chamam de 'Juízo Final', o advento do seu reino, do 'Reino de Deus' - mas por enquanto vivem 'na fé', 'no amor', 'na esperança'.
- Basta! Basta!"

Com o fim deste diálogo, Nietzsche se (nos?) pergunta: fé em quê? Amor a quê? Esperança em quê?

O liquidificador na minha cabeça ainda não parou...

sábado, 3 de novembro de 2007

Tabacaria

(sempre vale a pena reler...)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928

sábado, 27 de outubro de 2007

Painel

Na última aula, nós tivemos que fazer um painel pensando no conceito de "sujeito ético" para Kant, Nietzsche e Sartre.
O nosso grupo - Roberta, Thatiane, Vinícius e eu - pensou em alguns valores sociais, econômicos, culturais, que fazem o homem ser o que é. Seja valor como criação histórica e imposição a partir de determinada classe social (Nietzsche), seja o projeto da natureza realizado através dos valores de um líder (Kant), ou a responsabilidade de escolha desses valores (Sartre), a questão é que é impossível não ter valor algum, e o sujeito ético é aquele que vive de acordo com os valores que ele escolhe ou que lhe são impostos.
Parece que o ideal de super-herói de Nietzsche - o sujeito que supera a ética e vive além do bem e do mal - ainda está um tanto longe de se realizar...
O trabalho foi bem interessante porque mostrou como nossa cultura é visual - ou seja, nossos valores são representados visualmente, tornam-se símbolos - e como nós criamos nossa representação de mundo através de imagens e... valores!
Eis a nossa Árvore Genealógica da Moral:

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Aniversário

(Álvaro de Campos )

Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Ai se

(Poema de Rafaelle Donzalisky)

Ai se tudo que ficasse girasse diferente das coisas
que ficam num impasse de "ai se..."
ai se nada mais empacasse!
O mundo seria mais redondo e os intestinos mais soltos.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Los Años Mozos

(Belíssima canção do cantor e compositor cubano Pablo Milanés)

Los años mozos pasaron,
Y ahora saber que hay que ser
Y hay que estar.
Duro el camino que queda,
Y ahora saber caminar.
Y hay que andar.

Fueron los falsos valores
A mí solo llega
Quien sabe de hombre calzar,
Y hasta los tristes amores
Que tantos dolores
Me hicieron un tiempo pasar.

Y ahora tengo mis poros abiertos
Para lo que hay que hacer
Y esta hecho, o esperar mi muerte
Abriéndome el puente
Y diciéndome puedes pasar.

Los años mozos pasaron,
Y ahora saber que hay que ser
Y hay que estar.
Duro el camino que queda,
Y ahora saber caminar.
Y hay que andar.

sábado, 15 de setembro de 2007

Outras Armas

Porque a vida ainda pode ter um pouco de graça... e rir ainda pode ser um remédio

Ontem, citei o Millôr e já há algum tempo estava pensando em falar sobre o humor como arma. Arma de formação de consciência crítica, arma de transformação, ou simplesmente uma forma de levar melhor a vida.
Em seu maravilhoso Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Comte-Sponville apresenta o humor como uma delas, lembrando que "toda seriedade é condenável, referindo-se a nós mesmos":

"É impolido dar-se ares de importância. É ridículo levar-se a sério. Não ter humor é não ter humildade, é não ter lucidez, é não ter leveza, é ser demasiado cheio de si, é estar demasiado enganado de si, é ser demasiado severo ou demasiado agressivo, é quase sempre carecer, com isso, de generosidade, de doçura, de misericórdia... O excesso de seriedade, mesmo na virtude, tem algo de suspeito e de inquietante: deve haver algum fanatismo nisso... É virtude que se acredita e que, por isso, carece de virtude.
(...) Um pouco de humor, um pouco de amor: um pouco de alegria. Mesmo sem razão, mesmo contra a razão. Entre desespero e futilidade, às vezes a virtude fica menos num meio-termo do que na capacidade de abraçar, num mesmo olhar ou num mesmo sorriso, esses dois extremos entre os quais vivemos, entre os quais evoluímos, e que se encontram no humor."

Mas será que dá pra rir de tudo e em qualquer situação? Essa é a lição dos criadores do Pasquim.

Em 1969, em plena ditadura militar brasileira, e um ano após a imposição do AI-5, um bando de jornalistas, cartunistas e humoristas malucos resolveu criar um jornal alternativo, dispostos a ir contra o regime, sem bala e sem canhão, mas com uma arma talvez tão poderosa quanto: o humor. Tirando sarro de tudo, inclusive deles mesmos, os caras do Pasquim revolucionaram o jornalismo brasileiro e mostraram que ainda dava pra lutar, e que os ditadores poderiam até acabar com tudo (ou seja, com tudo o que a liberdade constitucional garante a um cidadão), mas que iam ter trabalho, ah, isso iam!

"Verdade do humor. A situação é desesperadora, mas não é grave." (Comte-Sponville)

Tem um documentário fantástico que conta a história do período: Humor com gosto de Pasquim. Nele, toda a patota (lendo Millôr, muitas expressões são incorporadas, bicho!) aparece lembrando os bons e "bons" momentos. Bons porque tudo o que eles faziam era uma barbaridade: inovações e tiros pra tudo quanto é lado. E "bons" porque, mesmo falando de censura, violência e estadias na prisão, eles não conseguem perder o bom humor e não dá pra conter as gargalhadas. Millôr, Claudius, Jaguar, Chico Caruso, Ziraldo... a graça não era vã e eles tinham consciência da luta:

"O riso, o humor são uma grande brecha contra o poder, porque o humor se faz contra o que está estabelecido, contra a autoridade estabelecida, seja ela eclesiástica, parlamentar, presidencial, o que for (...) é desvelar o que está por trás, mostrar o ridículo da posição, fazer ver os mecanismos que se escondem por trás das decisões... esta é a função do humor", diz o Claudius.

Ao final das batalhas ganhas e perdidas, sobra alguma desilusão - e é o Jaguar, lúcido, quem confessa estar cada vez mais convencido de que eles, humoristas, afinal, não apitavam nada:

"Em todo caso a gente se diverte, pelo menos pensa que influencia alguma coisa, mas eu acho que a história como que segue inexoravelmente... nós ladramos e eles passam..."

Será que esses humoristas não apitaram nada mesmo? Acredito que a marca que eles deixaram na história brasileira é bem maior que simples latido de cão desesperado. A revolução das idéias é talvez tão importante quanto a transformação das estruturas. E revolução foi o que eles fizeram. Quando o ser humano perde seus direitos constitucionais mais fundamentais - a liberdade de expressão, a liberdade de ir-e-vir (sabe lá o que é ser preso - quando não morto - só por que pensa mais assim ou mais assado? Ou simplesmente porque sim? Usar camisa vermelha também não era muito aconselhável... ) - aí é que ele aprende, de fato, com quantos paus se faz uma canoa. A tal "liberdade" (abstração das infinitas possibilidades de escolha) torna-se piada de mau gosto. Seria engraçado se o Sartre tivesse vivido no Brasil durante o regime militar... Essa idéia me fez pensar em uma charge... O desenho é do meu irmão Randal:


sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Liberdade segundo Millôr

Millôr Fernandes, no antigo Pasquim (e em que época!), também discutia essa tal liberdade:

"A liberdade é a condição (e por que não a condução?) fundamental do homem livre. Sacou? Aquele negócio de ir-e-vir. Peripatético às pampas. Largueza, ensancha e a ânsia de imensos descampados. Tamos aí. Como dizia Herbert Stengley - escritor que estou inventando neste momento - que maravilhoso arcaísmo é a liberdade. (...) Pois todo homem nasce livre, não é mesmo? Naturalmente dependente do pai, da mãe, da classe social e dos acasos genéticos. Mas decora logo a tabela dos direitos e deveres, faz as contas, e, se leva vantagem, cai de pau em cima dos outros. E assim que é, pô, não vem com essa não.
Ser livre, enfim, é bom notar, não é ser libertado. 'Eu te dou toda liberdade', tá na cara, é restrição máxima. Evita, nego. E dobra à esquerda. (...) Será a liberdade apenas uma nostalgia? Uma colagem mal feita de fatos nunca acontecidos? A política da esperança, já, assim, meio desesperada? Uma simples omissão dos poderes vigentes? O Fla x Flu do Possível contra a Aventura? O condicionamento total é a liberdade?"

O existencialismo é um humanismo

Na aula de ontem, a gente discutia a noção de bem em Sartre, se é que ele defende alguma idéia de bem... O bem é a própria escolha entre o bem e o mal (e entre todas as nuances de cinza que vão do preto ao branco), com a consciência da responsabilidade que essa escolha acarreta, para o bem ou para o mal. Nenhuma moral ou juízo de valor pré-estabelecido podem ajudar a realizar a escolha em situações concretas, e, assim, além da necessidade de escolher, a gente ainda tem que criar a própria moral que auxilie na escolha. O homem é invenção constante, é criação do nada. A moral sartreana, que nada tem de moralista, é uma moral da ação, do compromisso com as próprias escolhas, fazendo valer a liberdade que nos condena.

"O existencialista pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível; não pode existir já o bem a priori, visto não haver já uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já que precisamente estamos num plano em que há somente homens."

Talvez a gente possa dizer que o bem supremo (de novo, se é que, alguma vez, ele pensou em bem supremo) é a própria liberdade - essa mistura de condição universal e condenação humana.

"Quando declaro que a liberdade, através de cada circunstância concreta, não pode ter outro fim senão querer-se a si própria, se alguma vez o homem reconheceu que estabelece valores no seu abandono, ele já não pode querer senão uma coisa - a liberdade como fundamento de todos os valores."

A busca constante é pela liberdade em si:

"Queremos a liberdade pela liberdade e através de cada circunstância particular. E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade como definição do homem não depende de outrem, mas, uma vez que existe a ligação de um compromisso, sou obrigado a querer ao mesmo tempo a minha liberdade e a liberdade dos outros ; só posso tomar a minha liberdade como um fim se tomo igualmente a dos outros como um fim."

Queremos, sim, a liberdade. Será? Paradoxo dos paradoxos, a liberdade de escolha possibilita a própria liberdade de escolher entre ser livre ou não... Porque, apesar da condenação sartreana, ou justamente por causa dela - é a tal da má-fé - a alienação consciente e deliberada está aí! Lembrei do trecho de uma música do Dazaranha (uma banda de Florianópolis):

"O peixe, ele quer a rede ou ele quer o arpão? Ele quer água ou ele quer limão?"

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Filosofia de banheiro em imagens


Dialética

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Filosofia de banheiro

"O banheiro é um lugar dedicado ao corpo, em sua mais natural condição. Através da produção de grafitos, serve à comunicação humana como um canal de expressão escrita disponível a todos, um meio ao monopólio dos superveículos massificadores. Sem limite de censura externa e acessível a todos, torna-se um palco discreto de confidências." (Grafiteiros de Banheiro, G. Barbosa)

Tudo bem... nos banheiros da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) tem muitas coisas pesadas e escatológicas (mas mesmo assim, algumas muito engraçacadas e criativas por sinal...). Mas também tem coisas interessantes e até filosóficas, do tipo:

"Deus está morto - Nietzsche"
Resposta:"Nietzsche está morto - Deus" (banheiro da geografia)

Tese: A burguesia fede.
Antítese: Mas tem dinheiro para comprar perfume.

Lingüísticas também:

"o futuro do pretérito a deus pertenceria" (banheiro da letras)

"A porta de um dos banheiros femininos da sociais traz um debate sobre palavras 'pré cambrianas' - signifique isso o que for... alguma moça pediu, num recado, que parassem de escrever 'chulices', e outra replicou dizendo que a palavra estava na era pré-cambriana... Por fim, alguém escreveu que não existem palavras em tal era, apenas animais que desenham na porta do banheiro..."

E pra ridicularizar a própria verborragia filosofante:

"O homem é o único animal capaz de se desumanizar."
E logo abaixo: "O elefante é o único animal capaz de se deselefantizar!"

Uma vez quando limparam o banheiro teve um cara que escreveu: "inicia-se agora uma nova era de pensamentos e reflexões"

E viva o vandalismo cultural!

E pra não perder o pique, vamos de Poética com Manuel Bandeira (será que ele escreveria - escreveu? - em portas de banheiro?)


Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.



Pra quem quiser se divertir ou se instruir um pouco (tudo é uma questão de perspectiva...), aqui está um tópico da comunidade da FFLCH no orkut dedicado ao tema:
http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=25982&tid=432064&na=1&nst=1

E mais: uma tese analisando o discurso dos banheiros:
http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/a00009.htm

sábado, 1 de setembro de 2007

Armas (ou Para continuar acreditando...)

Viola enluarada
(Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle)

A mão que toca um violão
Se for preciso faz a guerra,
Mata o mundo, fere a terra.
A voz que canta uma canção
Se for preciso canta um hino,
Louva a morte.
Viola em noite enluarada
No sertão é como espada,
Esperança de vingança.
O mesmo pé que dança um samba
Se preciso vai à luta,
Capoeira.
Quem tem de noite a companheira
Sabe que a paz é passageira,
Prá defendê-la se levanta
E grita: Eu vou!
Mão, violão, canção e espada
E viola enluarada
Pelo campo e cidade,
Porta bandeira, capoeira,
Desfilando vão cantando
Liberdade, liberdade, liberdade...

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Coisas da Ética

Na última aula, estávamos tentando definir o que seria a tal da ética. Realmente, esta é uma daquelas coisas que a gente sente ou pensa que sabe o que é, mas não consegue definir. Aqui vai uma tentativa...
De um lado, a ética pode ser o conjunto de valores morais que regem o comportamento e a ação humana, e, de outro, a ciência, dentro da Filosofia, que estuda esses valores. Mas ainda está longe de ser somente isso. Falar em ética e não falar em conceitos como os de bem, liberdade, justiça, não é lá muito ético... Sem contar na discussão entre a universalidade ou particularidade dos valores éticos: seria a idéia de bem, por exemplo, universal e inerente a todo ser humano, ou cada indivíduo ou cultura desenvolve sua própria noção de bem? Pois é, a coisa é complicada...
Semestre passado, a gente estudou a ética através de Sócrates e Aristóteles. Sócrates foi o primeiro grande pensador a transferir as investigações filosóficas para o interior do próprio homem, dando um novo sentido ao "conhece-te a ti mesmo" do oráculo de Delphos. Sua ética, baseada no conhecimento de si mesmo, traduzia uma busca constante, aprimorada através da investigação filosófica e de uma vida virtuosa, tendo sempre como meta ou guia, a Idéia de Bem Supremo (pertencente, enquanto tal, não a este mundo, mas ao Mundo das Idéias ou das Formas Perfeitas). Aristóteles também pensa a ética a partir da noção de Bem Supremo, trazendo, no entanto, esta noção para o plano terreno e humano, e identificando-a com a felicidade. A ética seria o conjunto de ações morais que levam à realização do bem supremo, ou seja, à felicidade. O bem é aquilo que o homem pode atingir através de sua atividade prática e de seu comportamento virtuoso, fazendo uso da reta razão ou equilíbrio (o "caminho do meio" dos budistas...). Para Aristóteles, a finalidade - causa mais importante - é a felicidade, a transformação da potência em ato, isto é, o desenvolvimento pleno de todas as potencialidades humanas tendo em vista o bem.
Mas, afinal, o que é ser ético?
A professora Mariza apontou o desenvolvimento da ética como o caminho que vai do sujeito empírico ao sujeito ético, ou seja, do saber ao ser. Não basta conhecer o bem; é preciso viver o bem "em si", ser ético é viver plenamente os valores e atitudes éticas. Mas se ética implica ação, como agir? (calma, que a angústia sartreana só chega semana que vem...) Aqui entra a noção de liberdade. De modo geral, a ética só se justifica se existe a liberdade, pelo menos a de escolha, entre o bem e o mal, entre o agir certo e o errado (outra questão importante: a ética é sempre maniqueísta, ou seja, pautada pela oposição bem x mal?). Não faria sentido ter de escolher entre um coisa e outra (ou várias?) se todas as nossas ações já fossem determinadas de antemão. Mas será que somos realmente livres? Mesmo quando temos a tal da liberdade de pensamento ou a liberdade de escolha, somos material e politicamente livres? Se a gente pensar em algumas teorias da Filosofia da Linguagem ou estudos sobre a ideologia, por exemplo, pode levar um susto ao suspeitar que mesmo o pensamento, constituído de idéias e linguagem, não é tão livre assim... No plano concreto e material da existência, a liberdade chega a ser uma grande falácia, e das boas! É livre um cidadão que é obrigado a trabalhar de dez a doze horas por dia ganhando uma miséria, sem acesso aos meios de produção, sem oportunidade de desenvolver-se plenamente como indíviduo através da produção e fruição da cultura e lazer, e sem possibilidade de participação política plena e consciente? É claro e perfeitamente aceitável que da minha poltrona aquecida, acompanhada de café e livros de filosofia, eu me considere totalmente livre...
Pensando na indústria cultural, seus defensores alegam a maior quantidade de opções como algo positivo... nesse caso, a liberdade se resumiria a escolher entre um produto e outro. Em uma passagem do filme "Mensagem pra você", Joe Fox, personagem de Tom Hanks, diz que adora um lugar como a cafeteria Starbucks, porque com a possibilidade de escolher entre café preto, com leite, descafeinado, cappucino, grande ou pequeno, um indivíduo, que nunca tem chance de escolher nada, se sente preenchido não apenas por um sentimento de liberdade, como também por um senso de identidade! Pois é... ética: à venda nos melhores mercados...
Costuma-se dizer que "a minha liberdade termina onde começa a do outro". Mas como diria o Mario Sergio Cortella, um educador e filósofo brasileiro que eu admiro muito, "a minha liberdade termina onde termina a do outro", ou seja, se há um homem que não é livre, eu também não sou.
No entanto, também há filósofos que acreditam na liberdade... Sartre, por exemplo. Mas nem tudo são flores... Se Deus já não existe, se nada é determinado, e eu sou um ser praticamente jogado no mundo e impelido a agir, todas as minhas escolhas e ações, pautadas pela minha liberdade total, ganham um peso e uma responsabilidade imensas do ponto de vista da existência. Diante de tanta responsabilidade, o que fazer e como agir? Eis a angústia sartreana (não agüentei esperar até a semana que vem...).
"Não importa o que fizeram de mim, mas o que eu faço com o que fizeram de mim.". Parece frase tirada de livro de auto-ajuda, mas é de Sartre. Respondendo, talvez, às críticas marxistas que lhe foram direcionadas, ele diria que não nega as determinações sociais, culturais, econômicas, políticas e ideológicas que restringem a ação dos homens, mas que acredita na força maior dessa tal liberdade humana...
Haja determinação! (com o perdão da ambigüidade...)
Só faltava cantar o samba-enredo de 1989 da Imperatriz Leopoldinense:

Liberdade, liberdade!
Abra as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz

Ou perceber os três quartos de sonho e um quarto de realidade desse canto...

Mas nem tudo está perdido! Alto lá! A gente pode assumir, sim, a liberdade como premissa fundamental (não necessariamente real) do nosso agir para tentar mudar alguma coisa. Porque se a gente ficar se considerando perdido numa caixa escura sem saber ou ter como sair, acaba não fazendo nada. Se a intenção é transformar, entre não acreditar em nada ou acreditar em alguma coisa, que seja alguma coisa. Melhor pecar pelo excesso... Pequemos, então.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Início de conversa

Pra início de conversa. Apesar da curiosidade, nunca tive disposição para escrever um blog. A idéia de falar da minha vida ou do que aconteceu no meu dia ou qualquer um dos infinitos assuntos que podem ser tratados em blogs nunca me seduziu o bastante para eu superar minha resistência e preguiça. Mas eis que surge um projeto interessante. A professora de Filosofia pediu que a gente fizesse um "caderno criativo" (nome sonoro, sugere mais escrita de poesia...), contendo anotações, alusões, idéias, devaneios, tudo o que os temas tratados em sala possam suscitar em nossa mente. Agora, sim. Um blog pode ser uma boa idéia!

A disciplina. Este próximo semestre promete. A gente vai estudar Kant, Nietzsche, Sartre e a Escola de Frankfurt. Minha empolgação não poderia ser maior! Sempre quis conhecer bem a obra de Kant , mesmo que inicialmente por motivos secundários... Um outro filósofo de que eu gosto bastante chamado Ernest Cassirer desenvolveu grande parte de seu trabalho a partir das idéias de Kant...
Nietzsche... só o nome já sugere o inesperado. Sempre tive receio de estudá-lo pois acredito que uma má compreensão de sua obra, de uma frase sua sequer, pode ter conseqüências devassas para um espírito desatento. Mas agora é chegada a hora!
Já Sartre chega quase a ser o alter-ego da maioria dos adolescentes em crise entrando na idade adulta, período em que a verdade do "inferno são os outros" chega a doer. Acredito em fases existencialistas da vida. Identificação pura. Agora meu interesse no Existencialismo é mais desprendido. Além disso, literatura existencialista é sempre um prato cheio pra quem gosta de ler. Os contos do próprio Sartre, as "Memórias de uma moça bem comportada", da Simone de Beauvoir (não adianta esperar por ironia no título... ela era de fato uma moça bem comportada!), "O Estrangeiro", de Camus, "Aparição", de Vergílio Ferreira (um escritor português fantástico), Camilo José Cela (espanhol) e tantas outras coisas boas, são de encher a alma de idéias desnorteantes. E quem quer as idéias normais?
Por fim, a Escola de Frankfurt. Essa é parte barra pesada do curso. Imprescindível, principalmente pra quem está na área de Comunicação, mas precisa ter coragem. De entrar e conseguir sair ileso. O risco de se tornar um pessimista totalmente desiludido com a vida é grande. Em meio ao Apocalipse, a única solução possível é saltar do décimo quarto andar, como disse o João Batista. Consciência crítica, sim. Pessimismo, não. Adorno certa vez disse que depois de Auschivitz, nenhum poema fazia sentido. Pois é nessas horas que a poesia (e a arte em geral) se faz mais necessária. A vida não pode ser só isso. A vida é mais. A Vida é maior que a própria vida.

A aula de ontem. A professora Mariza Galvão pediu que a gente analisasse a música "Novo Tempo", do Ivan Lins.

No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos crescidos, estamos atentos
Estamos mais vivos pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
Da força mais bruta, da noite que assusta
Estamos na luta pra sobreviver
Pra que nossa esperança
Seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho que se deixa de herança
No novo tempo, apesar dos castigos
De toda fadiga, de toda injustiça
Estamos na briga pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
De todos os pecados, de todos enganos
Estamos marcados pra sobreviver
No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos em cena, estamos nas ruas
Quebrando as algemas pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
A gente se encontra cantando na praça
Fazendo pirraça pra sobreviver

"Estamos marcados pra sobreviver"... Apesar de todas as coisas ruins do mundo, de todas as coisas ruins que nos acontecem, a gente tem que seguir. Seja a obrigação de sobrevivência (e, nesse caso, dá pra se perguntar, "pra quê, afinal?"), seja o vislumbre de alguma esperança que ainda pode iluminar o caminho, a verdade é que a vida continua. E, com o perdão dos suicidas, com ou sem a gente.
"Estamos em cena"... A bola tá com a gente e a gente tem que jogar. Não dá mais pra ficar se fazendo de bobo ou esperar a banda passar. Mas fala-se muito em culpa. De quem é a culpa afinal? É nossa? Do governo? Do sistema? De Deus? Desde o obscurantismo da Idade Média, a idéia de crime e castigo não tem produzido nada de muito profícuo. Fazer se aprende fazendo, como dizem por aí. A consciência crítica poderia ser até noventa por cento da solução, mas não adianta nada ficar só apontando o dedo.
Pensando no contexto da ditadura militar no Brasil, em que a letra dessa música se encaixa perfeitamente, o inimigo estava ali, declarado, e a gente sabia contra quem lutar. Hoje a música continua fazendo sentido, mas o inimigo já não é tão óbvio. A gente luta, quando luta, sem saber com quem está lutando. A coisa tá dura, mas a gente tem que sobreviver. De fato, como a professora falou, o inimigo é a Ideologia. Todas as falsas idéias que a gente vive, ou melhor, que vive a vida por nós e faz a gente achar que tá vivendo. Mas, como cantaria Chico Buarque, em outra canção que faz também referência ao regime militar, "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia!". Apesar de o nosso "você" de hoje ser outro, amanhã continuará sendo outro dia.

Hoje você é quem manda.
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão.
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia?
Como vai proibir quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando e a gente se amando sem parar
Quando chegar o momento esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido, esse grito contido,
Esse samba no escuro.
Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza de “desinventar”.
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada nesse meu penar
Apesar de vocêAmanhã há de ser outro dia
Ainda pago pra ver o jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver a manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente, impunemente?
Como vai abafar nosso coro a cantar
Na sua frente?

Lembrei também do poema "A Flor e a Náusea", de Drummond, escrito na época da Segunda Guerra Mundial e da ascensão do nazismo:

Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


Pois é! O mundo parece ser o mesmo. As dores são as mesmas. Mas, apesar de tudo, ainda há flores. E só pra terminar esse jogo de pesar e de apesares, tem uma frase de um dos meus filmes favoritos, "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", que, apesar (mais um!) do otimismo que pode parecer ingênuo, é tão verdadeira pra mim quanto o ar que eu respiro:

"C'est beau la vie, encore même!" (A vida é bela, apesar de tudo!)