quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Genealogia da Moral

" - Alguém quer descer o olhar sobre o segredo de como se fabricam ideais na terra? Quem tem a coragem para isso?..."

O desafio e a provocação de Nietzsche instigam a curiosidade e não desapontam as expectativas depois da leitura. Colocar todas as idéias (especialmente aquelas que consideramos as "nossas" idéias) no liquidificador, e depois de bem mexidas e batidas, sair com algo completamente... incompreensível. Não exatamente sobre Nietzsche (se bem que nada fica ou é claro e óbvio com ele), mas sobre o que pensamos (ou achamos que pensamos) e sobre nós mesmos. Perder o instinto de rebanho será o início da redenção?

***

Nietzsche apresenta uma genealogia da moral a partir de suas raízes históricas, procurando definir os conceitos e a origem de "bem" e "mal". Nega inicialmente a associação entre "bom" e ações não egoístas ou a utilidade das ações. Para ele, a origem de bem está na classe que o determina:

"(...) o juízo 'bom' não provém daqueles aos quais se fez o 'bem'! Foram os 'bons' mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu."

Um outro caminho para iluminar o estudo sobre a origem do bem está na própria linguagem. E mais uma vez, Nietzsche enfatiza as determinações de classe, seja pelo "direito" dos nobres de criar conceitos e dar nomes às coisas - "eles dizem 'isto é isto', marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas" - seja pela própria etimologia da palavra:

"(...) em toda parte, 'nobre', 'aristocrático', no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu 'bom', no sentido de 'espiritualmente nobre', 'aristocrático', de 'espiritualmente bem-nascido', 'espiritualmente privilegiado': um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz 'plebeu', 'comum', 'baixo' transmutar-se finalmente em 'ruim'."

Seguindo a regra de que "o conceito denotador de preeminência política sempre resulta em um conceito de preeminência espiritual", com os sacerdotes, a casta mais elevada socialmente, a oposição puro x impuro passou a designar a distinção de castas. O confronto entre a casta dos sacerdotes (representada pelos judeus) e a dos guerreiros (a nobreza) levou a uma inversão radical de valores: o bom passou a designar não mais o nobre, mas o seu oposto: o miserável:

"os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança - mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também os eternamente os desventurados, malditos e danados!..."

Assim, com os sacerdotes judeus, a partir desta inversão e da imposição de um novo conceito de "bem", teve início a "revolta dos escravos na moral":

" - A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um 'fora', um 'outro', um 'não-eu' - e este Não é seu ato criador."

Ao contrário do nobre, que define a partir de si mesmo a noção de bem, e, então, por oposição, a noção de mau, o homem do ressentimento (o "escravo") define inicialmente o "mau", como o inimigo ao qual devota ódio, e, então, elabora a idéia de "bom".
Partindo desta oposição entre moral nobre e moral escrava, Nietzsche condena esta última como aquela que deu origem à moral cristã, fundamentada, essencialmente, no apequenamento do homem, através da disseminação e introjeção das idéias de culpa (a "má consciência"), castigo e fraqueza humana.

" - 'Eu nada vejo, mas por isso ouço muito bem. É um cochichar e sussurar cauteloso, sonso, manso, vindo de todos os cantos e quinas. Parece-me que mentem; uma suavidade visguenta escorre de cada som. A fraqueza é mentirosamente mudada em mérito, não há dúvida - é como você disse" -
- Prossiga!
-'e a impotência que não acerta contas é mudada em 'bondade'; a baixeza medrosa, em 'humildade'; a submissão àqueles que se odeia em 'obediência' (há alguém que dizem impor esta submissão - chamam-no Deus). O que há de inofensivo no fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar-na-porta, seu inevitável ter-de-esperar, recebe aqui o bom nome de 'paciência', chama-se também a virtude; o não poder-vingar-se chama-se não-querer-vingar-se, talvez mesmo perdão ('pois eles não sabem o quem fazem - somente nós sabemos o que eles fazem!'). Falam também do 'amor aos inimigos' - e suam ao falar disso."
(...)
- E como chamam aquilo que lhes serve de consolo por todo o sofrimento da vida? - sua fantasmagoria da bem-aventurança futura antecipada?
- 'Quê? Estou ouvindo bem? A isto chamam de 'Juízo Final', o advento do seu reino, do 'Reino de Deus' - mas por enquanto vivem 'na fé', 'no amor', 'na esperança'.
- Basta! Basta!"

Com o fim deste diálogo, Nietzsche se (nos?) pergunta: fé em quê? Amor a quê? Esperança em quê?

O liquidificador na minha cabeça ainda não parou...

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