quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Otimismo kantiano?

Em Idéia de uma história universal sob o ponto de vista cosmopolita, Kant apresenta a proposta de escrever uma história filosófica a partir de um questionamento e uma investigação central: a tentativa de descoberta das leis naturais universais que, embora sem serem totalmente conhecidas, guiam as ações do homem, de modo a realizar o propósito da natureza.
Segundo Kant, as ações humanas são regidas por leis universais impostas pela natureza que procura, através do fio condutor da razão, alcançar seu propósito: o bem, como a realização máxima de todas as disposições naturais humanas. A natureza dotou o homem com a razão e espera dele, por meio do uso racional de suas capacidades, o desenvolvimento de suas potencialidades, que levaria a humanidade a um grau de "máxima rudeza à máxima destreza e à perfeição interna do modo de pensar e, mediante isso, à felicidade."
Para conseguir atingir seu fim, a natureza faz uso do antagonismo inerente ao homem, representado pelas tendências opostas de associar-se e isolar-se - é a chamada "insociável sociabilidade", ou seja, a necessidade que o homem tem de viver em grupo e, ao mesmo tempo, assegurar seus próprios interesses. Apesar de seus traços negativos, Kant vê nesta oposição uma força propulsora que impulsiona o homem a superar a si mesmo. O antagonismo é, portanto, um dos instrumentos utilizados pela natureza para alcançar seu propósito, pois se os homens vivessem em perfeita harmonia, "de tão boa índole como as ovelhas que apascentam", não seriam impelidos a desenvolverem suas disposições naturais. Assim, a intratabilidade da natureza é necessária para a evolução moral e racional da espécie humana, uma vez que é através do conflito e da tensão de forças opostas que o homem tende ao bem.
Neste sentido, Kant vê também as guerras como algo necessário para o propósito da natureza, já que elas representam uma tentativa de criar novas relações entre os Estados. A natureza, em sua intratabilidade, serve-se de todos os meios para atingir seu fim.
Outro aspecto ditado pela natureza é a necessidade que os homens têm de um senhor, para limitar sua liberdade e instaurar uma vontade universalmente válida, ou seja, o bem comum. Este senhor ou chefe supremo deveria ser o representante máximo da justiça entre os homens, responsável por conduzir a humanidade para o bem maior. Para Kant, o líder perfeito depende de uma constituição civil perfeita, que por sua vez depende de uma melhor relação entre os Estados. Estes, refletindo o antagonismo próprio dos homens, também se opõem uns aos outros, mas, em sua evolução, dariam origem a um Estado universal.
A oitava proposição de Kant resume sua concepção:

"Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto, como a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política perfeita internamente e, quanto a este fim, também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas disposições."

Embora Kant prevesse tal evolução da humanidade para tempos ainda longínquos e indeterminados, hoje, alguns séculos após seus escritos filosóficos, ainda não podemos vislumbrar, nem mesmo ao longe, a realização de um Estado universal e de todas as disposições humanas. Se considerarmos a visão evolucionista da história segundo Kant, ainda estamos na fase em que a intratabilidade da natureza não produziu seus frutos positivos e reconciliadores. A realização do grande propósito da natureza exige "conceitos exatos da natureza de uma constituição possível, grande experiência adquirida através dos acontecimentos do mundo e, acima de tudo, uma boa vontade predisposta a aceitar essa constituição." No atual estágio da humanidade, parece que nenhuma destas exigências está perto de ser satisfeita.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Genealogia da Moral

" - Alguém quer descer o olhar sobre o segredo de como se fabricam ideais na terra? Quem tem a coragem para isso?..."

O desafio e a provocação de Nietzsche instigam a curiosidade e não desapontam as expectativas depois da leitura. Colocar todas as idéias (especialmente aquelas que consideramos as "nossas" idéias) no liquidificador, e depois de bem mexidas e batidas, sair com algo completamente... incompreensível. Não exatamente sobre Nietzsche (se bem que nada fica ou é claro e óbvio com ele), mas sobre o que pensamos (ou achamos que pensamos) e sobre nós mesmos. Perder o instinto de rebanho será o início da redenção?

***

Nietzsche apresenta uma genealogia da moral a partir de suas raízes históricas, procurando definir os conceitos e a origem de "bem" e "mal". Nega inicialmente a associação entre "bom" e ações não egoístas ou a utilidade das ações. Para ele, a origem de bem está na classe que o determina:

"(...) o juízo 'bom' não provém daqueles aos quais se fez o 'bem'! Foram os 'bons' mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu."

Um outro caminho para iluminar o estudo sobre a origem do bem está na própria linguagem. E mais uma vez, Nietzsche enfatiza as determinações de classe, seja pelo "direito" dos nobres de criar conceitos e dar nomes às coisas - "eles dizem 'isto é isto', marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas" - seja pela própria etimologia da palavra:

"(...) em toda parte, 'nobre', 'aristocrático', no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu 'bom', no sentido de 'espiritualmente nobre', 'aristocrático', de 'espiritualmente bem-nascido', 'espiritualmente privilegiado': um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz 'plebeu', 'comum', 'baixo' transmutar-se finalmente em 'ruim'."

Seguindo a regra de que "o conceito denotador de preeminência política sempre resulta em um conceito de preeminência espiritual", com os sacerdotes, a casta mais elevada socialmente, a oposição puro x impuro passou a designar a distinção de castas. O confronto entre a casta dos sacerdotes (representada pelos judeus) e a dos guerreiros (a nobreza) levou a uma inversão radical de valores: o bom passou a designar não mais o nobre, mas o seu oposto: o miserável:

"os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança - mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também os eternamente os desventurados, malditos e danados!..."

Assim, com os sacerdotes judeus, a partir desta inversão e da imposição de um novo conceito de "bem", teve início a "revolta dos escravos na moral":

" - A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um 'fora', um 'outro', um 'não-eu' - e este Não é seu ato criador."

Ao contrário do nobre, que define a partir de si mesmo a noção de bem, e, então, por oposição, a noção de mau, o homem do ressentimento (o "escravo") define inicialmente o "mau", como o inimigo ao qual devota ódio, e, então, elabora a idéia de "bom".
Partindo desta oposição entre moral nobre e moral escrava, Nietzsche condena esta última como aquela que deu origem à moral cristã, fundamentada, essencialmente, no apequenamento do homem, através da disseminação e introjeção das idéias de culpa (a "má consciência"), castigo e fraqueza humana.

" - 'Eu nada vejo, mas por isso ouço muito bem. É um cochichar e sussurar cauteloso, sonso, manso, vindo de todos os cantos e quinas. Parece-me que mentem; uma suavidade visguenta escorre de cada som. A fraqueza é mentirosamente mudada em mérito, não há dúvida - é como você disse" -
- Prossiga!
-'e a impotência que não acerta contas é mudada em 'bondade'; a baixeza medrosa, em 'humildade'; a submissão àqueles que se odeia em 'obediência' (há alguém que dizem impor esta submissão - chamam-no Deus). O que há de inofensivo no fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar-na-porta, seu inevitável ter-de-esperar, recebe aqui o bom nome de 'paciência', chama-se também a virtude; o não poder-vingar-se chama-se não-querer-vingar-se, talvez mesmo perdão ('pois eles não sabem o quem fazem - somente nós sabemos o que eles fazem!'). Falam também do 'amor aos inimigos' - e suam ao falar disso."
(...)
- E como chamam aquilo que lhes serve de consolo por todo o sofrimento da vida? - sua fantasmagoria da bem-aventurança futura antecipada?
- 'Quê? Estou ouvindo bem? A isto chamam de 'Juízo Final', o advento do seu reino, do 'Reino de Deus' - mas por enquanto vivem 'na fé', 'no amor', 'na esperança'.
- Basta! Basta!"

Com o fim deste diálogo, Nietzsche se (nos?) pergunta: fé em quê? Amor a quê? Esperança em quê?

O liquidificador na minha cabeça ainda não parou...

sábado, 3 de novembro de 2007

Tabacaria

(sempre vale a pena reler...)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928