sábado, 23 de julho de 2011

Nunca te vi, sempre te amei

Ontem revi o filme Nunca te vi, sempre te amei. É a história de uma escritora de Nova Iorque que passa a se corresponder com um livreiro de Londres. O que de início era uma simples solicitação de livros vai se transformando, ao longo dos anos, em uma forma muito especial e peculiar de relacionamento. O filme assume a forma narrativa da correspondência, com a troca contínua de cartas entre Helene Hanff e Frank Doel. Um belo exemplo do gênero epistolar no cinema.
A paixão por livros é o pano de fundo que acompanha o desenrolar da vida dos personagens. Uma história de amor? Talvez, sim. Mas um amor dos mais raros, dos mais sutis (e se o título em português não deixa dúvidas, a sutileza fica por conta do original, 84 Charing Cross Road, endereço da livraria em Londres).

"A humanidade, como um todo, é um livro. Quando um homem morre, um capítulo não é arrancado e sim traduzido para um idioma melhor. E cada capítulo deve assim ser traduzido. Deus emprega vários tradutores. Alguns trechos são traduzidos pela idade, outros pela doença, alguns pela guerra, outros pela justiça. Mas a mão de Deus reúne novamente todas as folhas soltas  e as coloca naquela biblioteca em que os livros se abrem uns para os outros."

Esta é uma passagem de John Donne, lida por Helene. A metáfora do livro como vida resume a beleza de 84 Charing Cross Road,  um filme para se guardar na estante.


sábado, 9 de julho de 2011

Conversa de banco de praça

Às vezes, a gente encontra boas histórias nas situações mais inusitadas. Hoje, tive um encontro casual e inesperado com a própria História.
Durante meu passeio de bicicleta, parei na praça do Aquário de Santos para aproveitar o sol em dia frio e a paisagem do mar. A dois bancos do meu, dois guardadores de carro mantinham uma conversa acalorada. Distraída com os olhos, eu não ouvia o que eles diziam. Depois de uns dez minutos, me preparava para ir embora, quando um deles se aproximou de mim:
- Moça, por favor, a revolução de hoje aconteceu porque os paulistas queriam se separar do Brasil, não é?
Surpreendida com a pergunta, parei e começamos a nossa própria discussão sobre a Revolução Constitucionalista de 32. Minha surpresa foi crescendo com a profundidade dos seus conhecimentos históricos e a sua empolgação. Me deixei ficar e fui puxando mais conversa. Ele conhecia as datas (a Revolução de 32, a ditadura de 30), os personagens, os conflitos políticos entre São Paulo e o Rio Grande do Sul. Falou sobre Getúlio Vargas, ditador em São Paulo, herói no Sul, onde até "tem uma estátua de bronze numa praça. Ele e o assistente dele, o Magalhães". Esse, eu não conhecia... Depois falou sobre outros conflitos separatistas (os alemães no Sul, por exemplo), da colonização da Guiana Francesa e do Suriname ("os estrangeiros, franceses, ingleses, holandeses invadiram e tomaram pra eles") e da nossa colonização. "A gente tem essa colonização errante porque quando os portugueses vieram pra cá, mandaram os degredados, os criminosos." De passagem, falou de seu avô holandês, "bem holandês mesmo, com cabelo sarará e olho azulzinho da cor do anil", igual ao seu. Voltou à História, questionando o tal do descobrimento do Brasil. "E o Pedro Álvares Cabral? Como é que ele descobriu o Brasil se quando ele chegou já tinha um monte de índio aqui? Jogou gasolina e acendeu o fósforo, isso é que foi o descobrimento!". Falou de D. Pedro I e a carta que escreveu para o pai, D. João, libertando o Brasil. Falou da revolta dos mineiros contra a monarquia, outra tentativa de libertação. "Aí, o que fizeram? Mataram o Tiradentes!". Para resumir uma longa conversa, minha aula de História foi do Descobrimento a Juscelino Kubitschek.
Pensando já que se tratava de um daqueles casos de pessoas com boa formação que vão parar nas ruas, perguntei se ele tinha estudado História. "Estudei. Estudei a primeira série, a segunda série e a terceira série, mas na quarta, tive que parar. É que eu tenho a cabeça boa, mesmo".
Não só a cabeça boa, mas o jeito de falar despretensioso e a simpatia, tornavam a narrativa da História muito mais interessante e prazerosa que enredo de filme. A boca sem dentes não intimidava o sorriso escancarado.
Perguntei seu nome. "É Carlos". Ia brincar, dizendo que era nome de imperador, mas fiquei com receio de ele começar a falar sobre a História da França e do Império de Carlos Magno (receio justificado só porque já era tarde e eu tinha que ir embora). "Qual é o nome da moça?". Rose. "Rose é uma rosa num jardim. Já fiz música com essa frase. É um cenário que rende bastante em poesia...". E começou a declamar um poema que, infelizmente, não guardei de memória (minha cabeça não é tão boa quanto a dele...). Se meu pasmo e encanto já não eram poucos, com a poesia, então! "O senhor, além de tudo, é poeta, seu Carlos?". Infelizmente, eu tinha que ir e a conversa sobre poesia teria que ficar para depois. "Fico sempre aqui nessa praça, você passa sempre aqui?", "Passo, sim. Quando eu vier, eu paro pra gente conversar, tá bom?"
Na hora da despedida, o outro guardador que antes havia se afastado, se reaproximou. "E o feriado da Revolução de hoje é só em São Paulo ou no Brasil todo?", perguntou o seu Carlos. "É um feriado paulista, só em São Paulo". "Em Santos também?". "E Santos fica onde?", respondeu o outro, com seus conhecimentos de Geografia...