domingo, 26 de maio de 2013

Depois da vida

Você acaba de morrer. Agora deve escolher o momento mais importante de toda a sua vida. Uma equipe irá produzir e filmar o seu momento e essa será a única lembrança que você vai levar por toda a eternidade. Esse é o ponto de partida de Depois da Vida, filme do diretor japonês Hirokazu Kore-eda.
O cenário é uma velha hospedaria e cada pessoa tem a ajuda de uma espécie de guia espiritual. Uma semana entre decidir o momento e terminar o filme, ou acabam presos nesse limbo.
A difícil questão da escolha e o trabalho com a memória revisitada e reconstruída despertam reflexões sobre a vida e a importância de encontrar aquele momento de perfeição dentro de si mesmo ao qual voltar. Bolinhos de arroz no bambuzal depois de um terremoto, a brisa em um passeio de bonde, ruído de sinos na bolsa de uma pessoa especial se aproximando... a vida sintetizada em um único instante de felicidade. O significado e a beleza da existência explorados de maneira poética. Uma bela visão da morte, uma bela visão da vida.



domingo, 19 de maio de 2013

O último voo do flamingo

Conselhos de minha mãe foram apenas silêncios. Suas falas tinham o sotaque de nuvem.
- A vida é que é a mais contagiosa - dizia.

Passou-se o tempo e eu saí da terra nossa, encorajado pelo padre Muhando. Na cidade, eu tinha acesso à carteirinha das aulas. A escola foi para mim como um barco: me dava acesso a outros mundos. Contudo, aquele ensinamento não me totalizava. Ao contrário, mais eu aprendia, mais eu sufocava. Ainda me demorei por anos, ganhando saberes precisos e preciosos.
Na viagem de regresso não seria já eu que voltava. Seria um quem não sei, sem minha infância. Culpa de nada. Só isto: sou árvore nascida em margem. Mais lá, no adiante, sou canoa, a fugir pela corrente; mais próximo sou madeira incapaz de escapar do fogo.

Minha mãe partira na curva da chuva, saindo a habitar a estrela de nenhumas pontas. A partir de então, a vida já não lhe comparecia: ela apanhara o último desencontrão. Ainda lembrei suas palavras amadurecendo uma esperança para mim quando eu de tudo descria:
- Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é assim: está sempre toda por viver.

Aqueles momentos junto ao meu velhote me puxavam para um incerto sono, quem sabe isso que chamam de ternura fosse aquele amaciamento. Esses breves tempos foram, hoje eu sei, a minha única casa. No estuário onde meu velho deitara seu existir eu inventava minha nascente.

Tudo isso eu lembrava quando cheguei à praia de Inhamudzi onde meu velho se exilara. O lugar não era distante e eu viajara mais lembranças que quilômetros. Desta vez, eu vinha quase sem mim, parecia um desqualquerficado. Meus saberes de cidade serviam para quê? Aqueles caminhos tinham serviços que não eram os mesmos das ruas urbanas: pareciam feitos apenas para passarem sonhos e poentes.

- No dia em que deixar de tomar banho.
Era o modo de nomear o dia de sua morte. Falava tudo por enfeite. Pois, nesse dia, dizia Hortênsia, quando estivesse toda por baixo das pálpebras, viessem lhe tirar posses e bens, esvaziassem-lhe a casa como vazia seria sua lembrança. A sua retirada do mundo dos viventes passou a ocupá-la por demasia. Em tudo e nada ela se despedia. Esbanjava adeuses. Saía à casa de banho, ia à cozinha: não se retirava sem as devidas vênias. Encenando o definitivo.

Quando nascemos sabemos tudo, mas não lembramos nada. Depois, crescemos, vamos ganhando lembrança e encolhendo sabedoria.

O tamarindo mais sua sombra: aquilo era feito para abraçar saudades. Minha infância fazia ninho nessa árvore. Em minhas tardes de menino, eu subia ao último ramo como se em ombro de gigante e ficava cego para assuntos terrenos. Contemplava era o que no céu se cultiva: plantação de nuvem, rabisco de pássaro. E via os flamingos, setas rapidando-se furtivas pelos céus. Meu pai sentava em baixo, na curva das raízes, e apontava os pássaros:
- Olha, lá vai mais outro!

- Seu pai não tem comportamento.
O velho Sulplício desvalorizava: sua mãe é como o grilo - tem alergia a silêncios.
E se enganava ao pensar que ele nada fazia. Porque ele, consoante anunciava, andava azafamado.
- Ando aprender a língua dos pássaros.

- Sabe o que dizia sua mãe? Que o melhor lugar para se chorar era a varanda.
E tinha sentido: a varanda. À frente estava o mundo e seus infinitos; atrás estava a casa, o primeiro abrigo. Com um gesto largo, meu velho anunciava o final daquela conversa.

(O último voo do flamingo, Mia Couto)

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Teologia do empreendedorismo

Ao lados das teologias da autoestima e da prosperidade, atualmente reina a teologia do empreendedorismo, em que Deus é substituído pelo Sucesso. O discurso do vitorioso, do bem-sucedido, do empreendedor, aqui desconstruído com o máximo de ironia pelo historiador Leandro Karnal:

Hoje, empreendedorismo é a pedra de toque de todas as pessoas, especialmente no mercado, para entenderem que sucesso e fracasso só podem existir se você não tiver ou não conseguir controlar seu empreendedorismo. Empreendedorismo é a chave do futuro. Empreendedorismo é tudo. Eu vou demonstrar a vocês que a ideia de empreendedorismo, nascida numa divisão tipicamente norte-americana entre winners e losers, a ideia de empreendedorismo é a das ideias teológicas a mais insidiosa, porque traz para dentro de mim a censura. Se eu fracassei a culpa é minha. É a internalização absoluta dessa censura. O sucesso é minha responsabilidade, o fracasso é minha culpa. Ele ajuda as pessoas porque ele estabelece que coragem, ousadia, autoestima, iniciativa, fazem parte do sujeito vitorioso. Isto é o empreendedorismo como processo. O novo homem que atinge a salvação não é mais São Francisco, não é mais Santo Antônio, não é mais Tomás de Aquino, mas é o empreendedor. Ele é o modelo de uma teologia imanente, uma teologia da matéria, que atingindo aquele ponto leva os outros à felicidade.
Este novo homem adquire a salvação mediante sua iniciativa pessoal, tal como o homem medieval, mas não é uma iniciativa pessoal em busca de um além, mas é de um hic et nunc, de um aqui e agora. E o inferno dessa teologia é o fracasso financeiro e pessoal. Para isso, há livros sobre empreendedorismo. Para isso há treinadores pessoais que fazem coach, que ficam dizendo "você precisa confiar em você", "você precisa ter metas", "você precisa se desenvolver", "você precisa colocar essas metas e repetir 'eu posso', 'eu sou vitorioso'". Isso que, há alguns anos seria tido como esquizofrenia ou bipolaridade, hoje é tido como consistência pessoal. O inferno atual é o fracasso. Vai para o inferno quem não tem iniciativa. Vai para o inferno quem não se planeja. Vai para o inferno a pessoa que não tem metas. Vai para o inferno a pessoa pessimista. Este é o inferno atual. Aquele pessimista que possivelmente seria salvo na Idade Média, hoje ele é o condenado.
Nós precisamos estabelecer medidas para esse empreendedor. Há uma nova soteriologia - sotero, em grego, salvador. Há uma nova teologia da salvação. Esta salvação não é mais uma salvação abstrata ou metafísica. Esta salvação é uma nova forma de evitar os seguintes  pecados, pecados que todo RH, que são os novos departamentos teológicos do planeta, sabem: quem não é pró-ativo, quem não colabora com a sinergia da empresa, quem não veste a camiseta, quem não tem metas, quem não recebe aquela notícia "vamos fazer um treinamento sabe lá onde", "oba! É tudo o que eu quero! Que bom! É a coisa que eu mais gosto", e assim por diante, quem não tem criatividade, e assim por diante, quem não sai da caixinha, e outras fórmulas catequético-teológicas. São fórmulas e essas fórmulas são feitas, como toda teologia, para prometer felicidade, como toda teologia, para dizer quem erra, quem é pecador, e como toda teologia, se baseia numa prática em grego, ascesis, ascese, que é a prática teológica. E para isso vocês precisam de atividades e novos cultos, e esses cultos litúrgicos, em qualquer empresa hoje se chamam reuniões. As reuniões, como toda liturgia, tratam de um tema abstrato. Tem que ter fé para acreditar na reunião. Existe um sacerdote oficiante e existe um rito. Este rito tem frases ditas por um e repetidas por todos. Há uns anos era "o Senhor esteja convosco", "Ele está no meio de nós". Hoje é "bem-vindos à nossa reunião" e as pessoas sorriem porque é importante ser feliz. Pelo menos é importante parecer ser feliz para fazer parte da equipe, porque essa não é uma equipe de losers, é uma equipe de winners. Gente vitoriosa cresce.
(...) Dentro dessa ideia do empreendedorismo, é muito curioso que nós nunca fizemos tantas coisas e nunca fomos tão improdutivos na história humana.

(Os velhos e os novos pecados, Leandro Karnal, no Café Filosófico)

terça-feira, 7 de maio de 2013

Clube dos Cinco

Sábado, 24 de março, 1984.
Colégio Shermer.
Shermer, Illionois, 60062.

Caro senhor Vernon,

Aceitamos o fato de que temos que sacrificar um sábado inteiro de castigo pelo que quer que seja que tenhamos feito de errado. O que fizemos foi errado. Mas achamos que o senhor está louco de nos fazer escrever uma redação dizendo quem achamos que somos. O que lhe importa? Você nos vê como quer, nos termos mais simples, nas definições mais convenientes. O senhor nos vê como um cérebro, um atleta, uma neurótica, uma princesa, um marginal. Correto? É assim que nos vemos às sete horas da manhã de hoje. Fizeram lavagem cerebral em nós.

Don't You (Forget About Me) by Simple Minds on Grooveshark

É com esse texto e ao som de "Don't you forget about me" que começa um clássico do cinema: "Clube dos Cinco" (The Breakfast Club). Não se trata de um "Cidadão Kane" ou "Cantando na Chuva", mas mesmo assim um clássico. Do mestre John Hughes. Se o nome não diz nada, talvez pensar em "Curtindo a vida adoidado" (Ferris Bueller's Day Off), outro clássico, ajude.
Falar em anos 80 é falar de John Hughes, nome que se tornou símbolo de uma geração e referência em cultura pop. Mas não é preciso ter vivido nos anos 80 para conhecer ou se identificar com seus filmes. Passar um dia bolando aula com Ferris Bueller é suficiente para virar fã. É praticamente impossível não se contagiar com tanto "teen spirit" em cenas como a do Ferris dançando e dublando "Twist and shout" dos Beatles, num desfile público - uma das sequências mais lembradas do cinema. Hughes soube como ninguém retratar esse espírito, sem ser pretensioso ou inverossímel e sem apelar para estereótipos.
Desconstruir os estereótipos de como os adolescentes são vistos ou vêem a si mesmos é justamente o tema de "Clube do Cinco". Um sábado de castigo na escola coloca cinco pessoas numa situação em que têm que enfrentar e reconhecer suas diferenças, ao mesmo tempo em que descobrem que têm mais em comum do que imaginam. Os conflitos, as angústias, os questionamentos e a diversão do que é ser adolescente, superando os termos mais simples e as definições mais convenientes.



quinta-feira, 2 de maio de 2013

Amor como philia

"'Amamos uma mulher pelo que ela não é', dizia Gainsbourg, 'a deixamos pelo que ela é.' Isso costuma ser verdade e vale também para os homens. Há quase sempre mais verdade no desamor do que no amor, pelo menos nesse amor, fascinado pelo mistério do que ele ama, do que ele não compreende e que lhe falta. Amor engraçado esse, que só ama o que ignora.
Tentemos, porém, compreender o que acontece nos outros casais, os que dão mais ou menos certo, os que dão inveja, os que parecem felizes e ainda parecem se amar, e se amar sempre... A paixão intacta, hoje mais que ontem e bem menos que amanhã? Não acredito nisso, e, ainda que isso acontecesse vez por outra, ou que pudesse acontecer, seria tão raro, tão milagroso, tão independente de nossa vontade, que não poderíamos tomar isso como base de uma opção de vida, nem mesmo de uma esperança razoável. De resto, não corresponde à experiência dos casais em questão, que nada têm de pombinhos e que cairiam na risada, na maioria dos casos, se alguém os comparasse a Tristão e Isolda... Simplesmente esses amantes continuam a se desejar e, por certo, se vivem juntos há anos, é mais potência do que falta, mais prazer que paixão, e quanto ao mais souberam transformar em alegria, em doçura, em gratidão, em lucidez, em confiança, em felicidade por estar juntos, em suma em philia, a grande loucura amorosa do começo. A ternura? É uma dimensão do seu amor, mas não a única. Também há a cumplicidade, a fidelidade, o humor, a intimidade do corpo e da alma, o prazer visitado e revisitado ('o amor realizado do desejo que permanece desejo', como diz Char), há o animal aceito, domesticado, ao mesmo tempo triunfante e vencido, há essas duas solidões tão próximas, tão atentas, tão respeitosas, como que habitadas uma pela outra, como que sustentadas uma pela outra, há essa alegria leve e simples, essa familiaridade, essa evidência, essa paz, há essa luz, o olhar do outro, há esse silêncio, sua escuta, há essa força de ser dois, essa abertura de ser dois, essa fragilidade de ser dois... Constituir apenas um? Faz muito tempo que renunciaram a isso, se é que um dia acreditaram nisso. Amam demais seu duo, com seus harmônicos, seu contraponto, suas dissonâncias às vezes, para querer transformá-lo em impossível monólogo! Passaram do amor louco ao amor sensato, se quisermos, e bem louco seria quem visse nisso uma perda, uma diminuição, uma banalização, quando é ao contrário um aprofundamento, mais amor, mais verdade, e a verdadeira exceção da vida afetiva. O que há de mais fácil de amar do que seu sonho? O que há de mais difícil do que amar a realidade? O que há de mais fácil do que querer possuir? O que há de mais difícil do que saber aceitar? O que há de mais fácil que a paixão? O que há de mais difícil do que o casal? Apaixonar-se está ao alcance de qualquer um. Amar não."

(Pequeno tratado das grandes virtudes, André Comte-Sponville)