terça-feira, 31 de maio de 2011

Uma história do amor

A História do Amor no Ocidente, de Denis de Rougemont, é considerado um clássico. Embora, graças à polêmica que apresenta, tenha suscitado posturas contraditórias entre os mais diversos estudiosos - ou justamente por isso -, o livro permanece um ponto de referência obrigatório para quem quer compreender o amor.
A tese fundamental de Rougemont é a de que o amor, tal como o conhecemos e vivemos atualmente, nasceu no século XII, no sul da França, a partir da relação entre religiões heréticas - em especial, o catarismo - e a poesia cortês. A linguagem amorosa teria surgido, assim, da necessidade de expressar conteúdos místicos que não poderiam ser declarados. O amor constituía, portanto, uma oposição direta à ortodoxia religiosa, tanto em sua postura fundamental quanto em seus costumes. Uma vez assimilados a linguagem e a postura amorosa, o amor é profanado e perde a ligação com a mística que o originou, tornando-se apenas uma retórica, sólida, porém, o suficiente, para alimentar todo o imaginário do Ocidente até os dias atuais.
O surgimento e consolidação desta retórica, capaz de expressar o sentimento, são fundamentais para a própria eclosão do sentimento, afinal, "quantos homens se apaixonariam se nunca tivessem ouvido falar de amor?"

Na falta dessa retórica, tais sentimentos certamente existiriam, mas de uma forma acidental, não-reconhecida, a título de extravagâncias inconfessáveis, como se fossem contrabando. Mas sempre verificamos que a invenção de uma retórica fazia avivar rapidamente certas potencialidades latentes do coração.

Código da cavalaria cortês, trovadorismo, o Eterno Feminino e o culto à mulher, costumes feudais, catarismo, tradição celta, platonismo, cristianismo, maniqueísmo, sufismo... o amor nasceu de uma verdadeira revolução:

No século XII, assistimos, tanto no Languedoc como no Limusino, a uma das mais extraordinárias confluências espirituais da história. De um lado, uma grande corrente religiosa maniqueísta, originária do Irã, atravessa a Ásia Menor e os Balcãs e atinge a Itália e a França, trazendo consigo a doutrina esotérica da Sofia-Maria e do amor pela "forma de luz". De outro, uma retórica altamente sofisticada, com seus processos, seus temas e personagens constantes, suas ambiguidades, renascendo sempre nos mesmos lugares, seu simbolismo, enfim, remonta desde o Iraque dos sufistas que sofreram influências platônicas e maniqueístas até a Espanha árabe e, ultrapassando os Pirineus, encontra no sul da França uma sociedade que, aparentemente, esperava apenas esses meios de linguagem para dizer aquilo que não ousava nem podia confessar na língua dos clérigos ou na fala vulgar. A poesia cortês nasceu desse encontro.
E assim, na última confluência das "heresias" da alma e daquelas do desejo, vindas do mesmo Oriente pelas duas margens do mar civilizador, nasceu o grande modelo ocidental da linguagem do amor-paixão.

Rougemont explora toda esta complexa e intrincada rede de relações que deu origem ao amor a partir da análise do mito de Tristão e Isolda e de uma verdade fundamental:

O amor feliz não tem história. Só existem romances do amor mortal, ou seja, do amor ameaçado e condenado pela própria vida. O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado do que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento. Eis um fato fundamental.
(...) Tristão e Isolda não se amam; eles o dizem e tudo o confirma. O que amam é o amor, é o próprio fato de amar. E agem como se tivessem compreendido que tudo o que se opõe ao amor o garante e o consagra em seus corações, para exaltá-lo ao infinito no instante do obstáculo absoluto que é a morte.
Tristão gosta de sentir amor, muito mais do que ama Isolda, a loura. E Isolda nada faz para retê-lo perto de si: basta-lhe um sonho apaixonado. Precisam um do outro para arder em paixão, mas não um do outro tal como cada um é; precisam mais da ausência que da presença do outro.
A separação dos amantes resulta assim de sua própria paixão e do amor que têm por sua paixão, mais do que o seu contentamento, mais do que seu objeto vivo.

A compreensão do mito, em todo o seu simbolismo, e de sua influência sobre o pensamento ocidental, ajuda a revelar o funcionamento da nossa própria postura diante do amor e da vida:

Paixão quer dizer sofrimento, coisa sofrida, preponderância do destino sobre a pessoa livre e responsável. Amar o amor mais do que o objeto do amor, amar a paixão por si mesma, desde o amabam amare de Santo Agostinho até o romantismo moderno, é amar e procurar o sofrimento.
Amor-paixão: desejo daquilo que nos fere e nos aniquila pelo seu triunfo. É um segredo cuja confissão o Ocidente jamais tolerou e não cessou de recalcar - de preservar!
(...) O êxito prodigioso do Romance de Tristão revela em nós, queiramos ou não, uma preferência íntima pela infelicidade. Não importa se essa infelicidade, segundo a força de nossa alma, é a "deliciosa tristeza" e o esplim da decadência, o sofrimento que transfigura ou o desafio que o espírito lança ao mundo: o que procuramos é aquilo que pode nos exaltar até o ponto de alcançarmos, sem querer, a "verdadeira vida" declamada pelos poetas. Mas essa "verdadeira vida" é a vida impossível. Esse céu de nuvens exaltadas, crepúsculo purpúreo de heroísmo, não anuncia o Dia, mas a Noite! A "verdadeira vida está ausente", diz Rimbaud. É apenas um dos nomes da Morte, o único nome pelo qual ousaríamos chamá-la - embora fingindo rejeitá-la.
Por que preferimos a narrativa de um amor impossível a outra qualquer? É que amamos a ardência e a consciência do que arde em nós.

Mística e amor-paixão estão intimamente ligados não apenas pela origem, mas por qualidades, motivos ou posturas comuns que os determinam. Uma destas características é expressa pela frase de Novalis: "Estamos a sós com tudo o que amamos":

Essa máxima traduz, aliás, entre muitos sentidos possíveis, um fato de observação puramente psicológica: a paixão não é absolutamente a vida mais rica sonhada pelos adolescentes: ela é, bem ao contrário, uma espécie de intensidade nua e desnudante, sim, verdadeiramente um amargo desnudamento, um empobrecimento da consciência destituída de toda diversidade, uma obsessão da imaginação concentrada numa única imagem - e a partir daí o mundo desaparece, "os outros" deixam de estar presentes, já não há próximo nem deveres ou laços que se mantenham, nem terra ou céu: estamos a sós com tudo o que amamos. "Perdemos o mundo, e o mundo a nós." É o êxtase, a fuga profunda para além de todas as coisas criadas.

A análise do amor-paixão leva a um dos principais temas discutidos por Rougemont: a crise do casamento burguês, explicada a partir da contradição entre duas morais - Eros, ou o amor-paixão, e Ágape, o amor cristão - e da ilusão que o conceito de paixão cria em nós:

O homem moderno, o homem da paixão, espera que o amor fatal lhe revele algo sobre ele mesmo ou sobre a vida em geral: último ranço da mística primitiva. Da poesia à anedota picante, a paixão é sempre a aventura. É o que vai transformar minha vida, enriquecê-la de novidades, de riscos estimulantes, de prazeres cada vez mais violentos e sedutores. É a porta aberta ao possível, um destino que se submete ao desejo! Nele penetrarei, ascenderei até ele e até ele serei "transportado"! A eterna ilusão, a mais ingênua e - nem é preciso dizer - a mais "natural" para muitos... Ilusão de liberdade. E ilusão de plenitude. 

Negar, então, a paixão, e sucumbir ao tédio? Superar a ilusão da paixão e decidir pelo amor que é ação, em detrimento do amor contemplativo, pode ser uma alternativa para viver uma experiência amorosa concreta e plena, baseada, sobretudo, na fidelidade, que não é negação ou sublimação forçada de desejos e instintos (já que os desejos, em última análise, nunca podem ser satisfeitos, apenas substituídos), mas a "aceitação incondicional de um ser em si, limitado e real, que escolhemos não a pretexto de enaltecê-lo, ou como 'objeto de contemplação', mas como um ser único e autônomo que vive ao nosso lado, uma imposição do amor ativo.":

O exercício da fidelidade para com uma mulher leva o homem a encarar as outras mulheres de maneira totalmente nova, desconhecida no mundo de Eros: como pessoas, não mais como reflexos ou objetos. Esse "exercício espiritual" desenvolve novas faculdades de julgamento, de controle de si mesmo e de respeito. Ao contrário do homem erótico, o homem fiel não procura mais ver numa mulher somente esse corpo interessante ou desejável, esse gesto involuntário ou aquela expressão fascinante; ele pressente, de imediato, o mistério profundo e grave de uma existência autônoma, estranha, de uma vida total, da qual, na verdade, só desejou um aspecto ilusório ou fugidio, projetado talvez por seu próprio sonho. Assim, a tentação se dissipa, desnorteada, em vez de se tornar obsessiva, e a fidelidade se garante pela lucidez que desenvolve. O poder do mito de enfraquece na mesma medida. Embora seja improvável que desapareça sem deixar marcas no coração de um homem moderno, perde ao menos sua eficácia: já não determina a pessoa. 

Moralismo ou não, casamento e fidelidade, no que representam um encontro e um diálogo, são, para Rougemont, um caminho para uma felicidade possível:

Analogamente à fé, é possível depreender que a paixão, nascida de um desejo mortal de união mística, só pode ser superada e realizada pelo encontro de um outro pela aceitação de uma existência própria, de sua pessoa para todo sempre diferente da nossa, mas que oferece uma aliança sem fim, iniciando um diálogo verdadeiro. Então a angústia, satisfeita pela resposta, e a nostalgia, satisfeita pela presença, deixam de buscar uma felicidade sensível, deixam de sofrer, aceitam a vida. E então o casamento é possível. Somos dois no contentamento. 

2 comentários:

Jack disse...

Muito bom teu texto e os comentários ao original.. realmente é um fato que muito me interessa! Eu vou procurar este livro.. já tinha uma vez comentado com um amigo meu durante horas sobre isso. veio bem a calhar.. parabéns mesmo!
OBS: tenho vários textos novos lá no blog! Abração!!

Rafaelle disse...

Nossa, Rose!

Que assunto intrigante, e texto maravilhoso!
Acho que o amor não tem definições, mas tem várias sensações.
Quero dizer que o casamento é sim, possível! e o sentimento q o mantém é exatamente esse citado.Acho que é muito diferente da paixão... É a doação, é a consciência do que te faz feliz.
Vixi, esse assunto rende muito...

Parabéns!

Beijo!