sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O lado humano das coisas

As aulas e a maioria dos professores parecem criar (ou recriar) o modelo de jornalista soldado: tem que ser agresssivo, tem que ser mal educado, nada de mostrar emoção; se importar com o "personagem" só quando for útil ou interessante à matéria, e quando a intenção for fazer da notícia sensação ou uma novelinha melodramática; tem que procurar a notícia conforme a cartilha (segundo o que a cartilha considera notícia) e escrever conforme a cartilha. O principal critério de noticiabilidade é a morte. Tal como na guerra. Morte alheia (de gente importante, melhor ainda) é alegria de jornalista. E assim, muitos candidatos à tal da "profissão repórter" se desencantam, enquanto outros, com tendências sádicas, se realizam. Os chamados "sensíveis" são delicados demais, segundo dizem. E delicadeza não tem vez no jornalismo. Será?
Ontem, a palestra com o jornalista Vladir Lemos (apresentador do programa Cartão Verde, da TV Cultura) mostrou com palavras, histórias e, mais ainda, com seu próprio jeito de ser, que ainda é possível não abraçar o lado sanguinário do jornalismo e valorizar o traço humano da profissão que, para ele, ainda é a arte de contar histórias. Trabalhando com esportes, o jornalista diz não querer saber de técnicas e táticas (em geral, o foco dos principais programas de esporte), mas de pessoas. Lembrando o início de sua carreira na TV Tribuna, quando ainda cobria assuntos gerais, falou de seu sofrimento quando era obrigado a cobrir as editorias de Política e Polícia. Certo dia, na redação, surgiu a notícia da mulher que supostamente teria matado o marido e enterrado no quintal de casa. Único repórter disponível no momento, não teve como escapar, e lá foi o Vladir fazer a matéria. Chegando ao local junto com o cinegrafista, acompanhou o interrogatório dos policiais. De início, a mulher negou. Depois, indicou o lugar em que estava o marido. Primeira enxadada, nada. Segunda, apareceu um dedão. Imediatamente, o repórter se dispôs a abandonar o local, com a justificativa de fazer uma passagem externa. "Ô, Vladir, você não vai ver?", foi a pergunta do cinegrafista. "E você acha que ela enterrou só o dedo do marido?". E saiu.
Histórias como esta, ou a entrevista em que fez o Adhemar Ferreira da Silva, conhecido pelo jeito turrão, cantar, ou a matéria com os detentos do Carandiru e a lenda de serem de maioria corinthiana, iluminam o lado humano das coisas e mostram que delicadeza não é sinônimo de frescura ou fraqueza, mas a capacidade de reconhecer no outro, uma pessoa, e na notícia, a possibilidade de uma verdadeira história.

2 comentários:

Rosa Marques disse...

Não sou jornalista, nem pretendo ser, mas acredito que essa mania de banalizar as coisas, de buscar sempre pelo sádico não é só de jornalistas não...
Parece que as pessoas se esqueceram de viver as coisas boas, de espalhar notícias boas, da delícia que é a arte de contar histórias...
Tomara que cada vez mais novos jornalistas como vc se inspirem Vladir para quebrar paradigmas e ousar ir além e ousar falar da essência, do belo que é simples e que, sim, interessa muito!

Vinícius Patrão disse...

Isso me soa a Gérson, não?