segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Para tranquilizar

Mas nossa filosofia não se torna assim uma tragédia? A verdade não se torna hostil à vida, ao que é melhor? (...) Sendo isso verdadeiro, restaria apenas um modo de pensar que traz o desespero como conclusão pessoal e uma filosofia da destruição como conclusão teórica? - Creio que o temperamento de um homem decidirá quanto ao efeito posterior do conhecimento: eu poderia imaginar um outro efeito que não o descrito, igualmente possível em naturezas individuais, mediante o qual surgiria uma vida muito mais simples e mais pura de paixões que a atual: de modo que inicialmente os velhos motivos do cobiçar violento ainda teriam força, em consequência do velho costume herdado, mas aos poucos se tornariam mais fracos, sob influência do conhecimento purificador. Afinal se viveria, entre os homens e consigo, tal como na natureza, sem louvor, censura ou exaltação, deleitando-se com muitas coisas, como um espetáculo do qual até então se tinha apenas medo. Estaríamos livre da ênfase*, e não mais seríamos aguilhoados pelo pensamento de ser apenas natureza ou mais que natureza. Certamente, como disse, isto exigiria um temperamento bom, uma alma segura, branda e no fundo alegre, uma disposição que não precisasse estar alerta contra perfídias e erupções repentinas, e em cujas manifestações não houvesse traço de resmungo e teimosia - essas características notórias e desagradáveis de cães e homens velhos que ficaram muito tempo acorrentados. Um homem do qual caíram os costumeiros grilhões da vida, a tal ponto que ele só continua a viver para conhecer sempre mais, deve poder renunciar, sem inveja e desgosto, a muita coisa, a quase tudo o que tem valor para os outros homens; deve-lhe bastar, como a condição mais desejável, pairar livre e destemido sobre os homens, costumes, leis e avaliações tradicionais das coisas. Com prazer ele comunica a alegria dessa condição, e talvez não tenha outra coisa a comunicar - o que certamente envolve uma privação, uma renúncia a mais. Se não obstante quisermos mais dele, meneando a cabeça com indulgência ele indicará seu irmão, o livre homem de ação, e não ocultará talvez um pouco de ironia: pois a "liberdade" deste é um caso à parte.

* (N.T.) Emphasis, no original. Também pode ser traduzido como "aparência, exterior", retomando o sentido primordial da palavra grega emphasis (do verbo emphaino, "fazer ver, fazer-se visível")

(Humano, demasiado humano, Friedrich Nietzsche)

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