quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Amor como philia (ou amor-amizade)

Se alguém lhe disser: "Fico feliz com a idéia de que você existe"; ou então: "Quando penso que você existe, fico feliz"; ou ainda: "Há uma felicidade em mim, e a causa da minha felicidade é a idéia de que você existe...", você tomará isso por uma declaração de amor, e terá razão, é claro. Mas terá também muita sorte: não apenas porque uma declaração spinozista de amor não é para qualquer um, mas também e principalmente porque é uma declaração de amor, ó surpresa, que não lhe pede nada! Bem sei que quando se diz "eu te amo" também não se pede nada, aparentemente. Tudo depende no entanto do amor de que se trata. Se o amor é falta, dizer "eu te amo" é pedir não apenas que o outro responda "eu também", mas é pedir o outro mesmo, já que você o ama, já que ele lhe faz falta e já que toda falta, por definição, quer possuir! Que peso para aquele ou aquela que você ama! Que angústia! Que prisão! Regozijar-se, ao contrário, é não pedir absolutamente nada: é celebrar uma presença, uma existência, uma graça! Que leveza, para você e para o outro! Que liberdade! Que felicidade! Não é pedir, é agradecer. Não é possuir, é gozar e se regozijar. Não é falta, é gratidão. Quem não gosta de agradecer, quando ama? Quem não gosta de declarar seu amor, quando está feliz? E por isso mesmo é dom, é oferenda, é graça em troca. Quem não gosta de ser amado? Quem não se regozija com o regozijo que proporciona? Por isso o amor nutre o amor e o dobra, tanto mais forte, tanto mais leve, tanto mais ativo, diria Spinoza, quanto é sem falta. Essa leveza tem um nome: é a alegria. E uma prova: a felicidade dos amantes. Eu te amo: tenho alegria por existires.

(...) Tentemos, porém, compreender o que acontece nos outros casais, os que dão mais ou menos certo, os que dão inveja, os que parecem felizes e ainda parecem se amar, e se amar sempre... A paixão intacta, hoje mais que ontem e bem menos que amanhã? Não acredito nisso (...) Simplesmente esses amantes continuam a se desejar e, por certo, se vivem juntos há anos, é mais potência que falta, mais prazer que paixão, e quanto ao mais souberam transformar em alegria, em doçura, em gratidão, em lucidez, em confiança, em felicidade por estar juntos, em suma em philia, a grande loucura amorosa do começo. A ternura? É uma dimensão de seu amor, mas não a única. Também há a cumplicidade, a fidelidade, o humor, a intimidade do corpo e da alma, o prazer visitado e revisitado ("o amor realizado do desejo que permanece desejo", como diz Char), há o animal aceito, domesticado, ao mesmo tempo triunfante e vencido, há essas duas solidões tão próximas, tão atentas, tão respeitosas, como que habitadas uma pela outra, como que sustentadas uma pela outra, há essa alegria leve e simples, essa familiaridade, essa evidência, essa paz, há essa luz, o olhar do outro, há esse silêncio, sua escuta, há essa força de ser dois, essa abertura de ser dois, essa fragilidade de ser dois... Constituir apenas um? Faz muito tempo que renunciaram a isso, se é que um dia acreditaram nisso. Amam demais seu duo, com seus harmônicos, seu contraponto, suas dissonâncias às vezes, para querer transformá-lo em impossível monólogo! Passaram do amor louco ao amor sensato, se quisermos, e bem louco seria quem visse nisso uma perda, uma diminuição, uma banalização, quando é ao contrário um aprofundamento, mais amor, mais verdade, e a verdadeira exceção da vida afetiva. O que há de mais fácil de amar do que seu sonho? O que há de mais difícil de amar do que a realidade? O que há de mais fácil do que querer possuir? O que há de mais difícil do que saber aceitar? O que há de mais fácil do que a paixão? O que há de mais difícil do que o casal? Apaixonar-se está ao alcance de qualquer um. Amar não.

(Pequeno tratado das grandes virtudes, André Comte-Sponville)

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