sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O tempo só anda de ida.
A gente nasce cresce amadurece envelhece e morre.
Pra não morrer tem que amarrar o tempo no poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o tempo no poste.

(Manoel de Barros)

quinta-feira, 24 de julho de 2014

"Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver." (Ariano Suassuna)

terça-feira, 11 de março de 2014

Eu Maior

"A vida é muito curta para ser pequena." (Benjamin Disraeli)



segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A vida segundo Nietzsche

"Fazer da vida uma obra de arte não consiste em introduzir arte na própria existência, ir ao teatro, visitar museus ou consumir literatura. Muito menos se pode entender como a imitação de um modelo: isso seria um equívoco. Trata-se de dedicar tempo e atenção ao desenvolvimento de si mesmo - ser amante da mudança e da transformação, no momento em que ocorre, não se deixar levar pela impaciência que nos faria aceitar o que alguns artistas ou pensadores oferecem já pronto - até encontrar o pincel apropriado, a tela e as cores próprias e adequadas, a fim de chegar a ser um mestre em nossa própria arte de viver.

(...) A vida filosófica é uma aventura, uma experiência que leva às suas próprias conclusões, isto é, um experimento radical do qual não se podem prever os resultados. É uma viagem sem destino planejado, na qual nada se busca e algo se encontra. Aqui, não existe a vida de um lado e a filosofia de outro. Como diz Nietzsche, trata-se de fazer de um acontecimento da vida um aforismo do pensamento, e de uma análise do pensamento uma nova perspectiva de vida."

(A potência segundo Nietzsche, Maite Larrauri e Max)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Pequeno adeus a Lou Reed

"Hey babe, take a walk on the wild side."

Walk on the Wild Side by Lou Reed on Grooveshark

domingo, 13 de outubro de 2013

Se o grafite mudasse alguma coisa, seria ilegal


Arte de rua ou vandalismo? O artista britânico Banksy eleva a contestação e o grafite aos limites da subversão e do sarcasmo. Das ruas para as telas, Banksy, que, apesar da fama e reconhecimento, ainda mantém sua identidade um mistério, teve mais uma sacada genial, colocando em cheque a própria arte de rua. Exit through the gift shop retrata a cena alternativa, mas também questiona a própria natureza da arte, a comercialização e o surgimento de um suposto artista que alcança o status de pop star da noite para o dia. O documentário conta a história do francês radicado em Los Angeles Thierry Guetta, um documentarista amador que, após anos filmando alguns dos mais reconhecidos artistas de ruas, torna-se ele mesmo um artista, e o tema do filme de Banksy.
Para alguns, o documentário não passa de uma farsa, mais uma das criações sarcásticas de Banksy. Seja a história verdadeira ou falsa, a crítica e o humor  estão tão presentes quantos em seus melhores trabalhos de rua.

 






terça-feira, 8 de outubro de 2013

I've got soul but I'm not a soldier.

(The Killers)

domingo, 15 de setembro de 2013

The Big Bang Theory e a filosofia

(Ou as alegrias de ser um nerd)


Penny: Então, como você está?
Sheldon: Bem, minha existência é um contínuo, então estou como estou em cada ponto do referido período de tempo.

Leonard: Isso não quer dizer que se um relacionamento carnal se desenvolvesse eu não participaria. Ainda que fosse breve.
Sheldon: Você acha que essa possibilidade seria ajudada ou minada se ela descobrisse seu shampoo de Luke Skywalker que não arde nos olhos na banheira?
Leonard: É do Darth Vader. O Luke Skywalker é o condicionador.


Sheldon: Revisei o quadro e, pelo visto, você estava certo.
Raj: Então, você estava errado.
Sheldon: Eu não disse isso.
Raj: Essa é a única inferência lógica.
Sheldon: Ainda assim, não foi o que eu disse.

Sheldon: Devo dizer que desde que você começou a ter relações sexuais regularmente, sua mente perdeu o sentido aguçado. Você deveria refletir a esse respeito.
Leonard: Com licença, mas Einstein teve uma vida sexual bastante agitada.
Sheldon: Sim, e ele jamais unificou a gravidade com as demais forças. Se não tivesse sido tão assanhado, todos teríamos máquinas do tempo agora.

Leonard: Leslie, eu gostaria de propor um experimento... Estava pensando em uma exploração biossocial com sobreposição neuroquímica.
Leslie: Espere, você está me chamando para sair?
Leonard: Eu caracterizaria como uma modificação de nosso paradigma "colegas barra amigos" com a adição de um componente tipo encontro, mas não precisamos discutir a terminologia.

Penny: Sabe, eu sempre digo que quando uma porta se fecha, outra se abre.
Sheldon: Não, não abre. A não ser que as duas portas estejam conectadas por interruptores ou haja sensores de movimento envolvidos. Ou se a primeira porta que se fechou criou uma mudança na pressão do ar que afeta a segunda porta.

Junte uma de suas séries de TV favoritas e um de seus assuntos favoritos em um único livro e você terá diversão garantida. Em The Big Bang Theory e a filosofia, as situações vividas por Sheldon, Leonard e companhia, são exploradas a partir de grandes questionamentos filosóficos.
Para quem não conhece ou não é familiarizado com o mundo das séries, The Big Band Theory acompanha a vida de quatro acadêmicos assumidamente nerds - o que inclui devoção por quadrinhos, super heróis, Star Wars, Jornadas nas Estrelas, jogos de computador e tecnologia, entre outros. Suas habilidades intelectuais sempre esbarram em uma incapacidade de lidar ou mesmo de compreender situações sociais da vida cotidiana, e nisso reside grande parte da graça da série. O drama e as alegrias de ser nerd pipocando com piadas inteligentes em situações banais a todo instante.
Já o livro consegue colocar uma pitada de graça na filosofia, discutindo questões sérias levantadas por filósofos ao longo dos tempos a partir das aventuras e desventuras dos quase heróis de Pasadena. O propósito da vida, a virtude, o mal, cientificismo e as limitações da racionalidade, linguagem e realidade objetiva, são alguns dos temas debatidos por acadêmicos e estudiosos que também não escondem suas preferências nerds.
Talvez quem não acompanhe a série não veja muita graça no livro. Mas os fãs de The Big Band Theory vão gostar de conhecer melhor seus personagens favoritos a partir de uma perspectiva filosófica.

"Um desses diálogos é particularmente relevante para o debate a respeito do cientificismo. Em The Work Song Nanocluster [A nanopartícula da canção de trabalho], Sheldon voluntaria-se para ajudar Penny em sua nova empreitada: tornar a empresa 'Flores da Penny' o mais lucrativa possível. Um pouco surpresa, Penny pergunta: 'E você sabe sobre essas coisas?' Sheldon, com um pouco de escárnio, responde: 'Penny, eu sou físico. Tenho um conhecimento abrangente sobre o universo inteiro e tudo o que ele contém.' Um pouco irritada, Penny faz uma pergunta para testar a hipótese de Sheldon: 'Quem é Radiohead?' Dessa vez, hesitante, Sheldon declara: 'Tenho um conhecimento abrangente de todas as coisas importantes do universo.' Esse é um exemplo quase perfeito de falácia do cientificismo: os físicos podem algum dia obter sucesso ao chegar a uma teoria de tudo, mas 'tudo' tem um significado muito específico e limitado aqui, referindo-se aos fundamentos básicos do universo. Não é verdade, seja do ponto de vista epistemológico ou do ontológico, que alguém possa, então, simplesmente aplicar o método cartesiano para trabalhar sua ascensão desde as supercordas até a importância cultural da banda Radiohead. Além disso, Sheldon oferece um juízo de valor não tão implícito aqui. No entanto, seria racional perguntar por que a física teórica é o único modo de discurso importante? Ou mais diretamente, como Sheldon poderia provar ou justificar sua posição dentro da ciência sozinha? Juízos de valor, mais uma vez segundo David Hume, parecem distintos do discurso científico exatamente porque o que é ou o que pode ser feito não é um guia certeiro para o que deve ser feito."

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Em teus braços



domingo, 28 de julho de 2013

À procura de Sugar Man

Se não fosse verdade, seria realmente difícil acreditar em uma história como essa. E se não tivesse ganho o Oscar deste ano de melhor documentário, Searching for Sugar Man poderia facilmente concorrer entre os indicados a melhor roteiro.


Sixto Rodriguez tocava em bares e ruas de Detroit quando foi descoberto por produtores, que o comparavam a Bob Dylan, em talento e genialidade. Mas seus dois álbuns, Cold Facts (1970) e Coming from Reality (1971), foram um verdadeiro fracasso e o músico foi dispensado por sua gravadora. Rodriguez desapareceu completamente da cena musical norteamericana da mesma forma que surgiu: em meio a neblina e mistério.
De forma ainda mais misteriosa, seu álbum Cold Facts chega à África do Sul e se espalha como um vírus musical revolucionário. Suas músicas tornam-se hino na luta contra o Apartheid, seus discos vendem milhões de cópias e Rodriguez atinge uma popularidade comparável à dos Beatles e de Elvis.
Em meio ao imenso sucesso, cresce o mito em torno do músico. Histórias de sua vida e de sua morte ganhavam contornos lendários. Alguns diziam que Rodriguez teria se matado atando fogo no próprio corpo durante uma apresentação, outros acreditavam que ele se suicidou com um tiro na cabeça após a má recepção do público em um show.
O mistério atrai dois admiradores e especialistas na obra de Rodriguez em busca de informações sobre o autor de Sugar Man, um dos maiores sucessos do músico. A trajetória desta busca e seu desdobramento surpreendente são o impulso do documentário (qualquer palavra a mais estragaria a grande surpresa do filme). Uma história absolutamente fascinante sobre um homem absolutamente fascinante. Redundância justificada, depois que se conhece Sixto Rodriguez.




terça-feira, 23 de julho de 2013

...

hoje aprendi a ouvir o silêncio.


quarta-feira, 17 de julho de 2013

Educação e liberdade

"Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem." (Paulo Freire)



"O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens, não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.
Exatamente porque não podemos aceitar a concepção mecânica da consciência, que a vê como algo vazio a ser enchido, um dos fundamentos implícitos da visão 'bancária' criticada, é que não podemos aceitar, também, que a ação libertadora se sirva das mesmas armas da dominação, isto é, da propaganda, dos slogans, dos 'depósitos'.
A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres 'vazios' a quem o mundo 'encha' de conteúdos; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como 'corpos conscientes' e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo."

(Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire)

quarta-feira, 26 de junho de 2013

O guarda-chuva azul

Um guarda-chuva azul se apaixona por uma guarda-chuva vermelha em uma noite de chuva forte. É essa basicamente a história do novo curta da Pixar, O guarda-chuva azul, lançado e exibido no cinema junto com Universidade Monstros (que, por sinal, também vale muito a pena ver).
Apesar da simplicidade do roteiro - ou justamente por causa dela - o curta atinge a perfeição em imagens e emoção. Muitos "ouns" garantidos.
Li um texto no blog da MTV americana que trazia no título "The cutest thing you'll see today". Realmente, O guarda-chuva azul é uma das coisas mais fofas para se ver em matéria de cinema.


quinta-feira, 20 de junho de 2013

Museu

Se houvesse
um museu
de momentos

um inventário
de instantes

um monumento
para eventos
que nunca aconteceram

se houvesse
um arquivo
de agoras
um catálogo
de acasos

que guardasse por exemplo
o dia em que te vi atravessar a rua
com teu vestido mais veloz

se houvesse
um acervo
de acidentes

um herbário
de esperas

um zoológico
de ferozes alegrias

se houvesse
um depósito
de detalhes

um álbum
de fotografias
nunca tiradas

(Ana Martins Marques)

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Do que eu falo quando eu falo de corrida

Escrever é como correr. Talvez a comparação seja disparatada, mas para o escritor e corredor japonês Haruki Murakami resume sua trajetória e o sentido de sua existência.
Autor consagrado, ganhador de diversos prêmios e sempre possível candidato ao Nobel de literatura, Murakami começou a correr quando começou a escrever, e as duas atividades nasceram de uma firme decisão. Simples assim. Um dia, vendo um jogo de basebol, percebeu que poderia escrever. E assim o fez.
A vontade de correr surgiu da necessidade de modificar todo o seu estilo de vida - antes de virar romancista, Murakami gerenciava seu bar de jazz em Tóquio -, e ficar mais saudável para conseguir se tornar um melhor escritor. Ideia pouco usual, considerando-se a imagem estereotipada do artista boêmio de vida desregrada. Talento de escritor cultivado, hábito de corredor criado, não demorou muito para Murakami tomar gosto por maratonas, passando a correr  pelo menos uma por ano.
Do que eu falo quando eu falo de corrida não é uma manual de corrida, nem um livro do tipo "corra e seja feliz". É o relato pessoal de um escritor que encontrou no ato de correr não apenas uma metáfora e um ponto de apoio para sua arte, mas também um caminho de autoconhecimento.

"A maior parte do que sei sobre escrever, aprendi correndo todos os dias. São lições práticas, físicas. Até onde posso me forçar? Quanto descanso é apropriado - e quanto é demais? Até onde posso levar alguma coisa e ainda assim mantê-la decente e consistente? Quando uma coisa se torna tacanha e inflexível? Quanta consciência do mundo exterior devo ter, e quanto devo me concentrar em meu próprio mundo interior? Em que medida devo ter confiança em minhas capacidades, e quando devo começar a duvidar de mim mesmo? Sei que se eu não tivesse me tornado um corredor de longa distância quando me tornei romancista, minha obra teria sido vastamente diferente. Quão diferente? Difícil dizer. Mas alguma coisa definitivamente teria sido diferente.
Em todo caso, fico feliz por não ter parado de correr em todos esses anos. O motivo é o seguinte: gosto dos romances que escrevi. E fico ansioso para descobrir que tipo de romance vou produzir em seguida. Uma vez que sou um escritor limitado - uma pessoa imperfeita vivendo uma vida limitada, imperfeita -, o fato de que ainda consiga me sentir desse jeito é uma verdadeira realização. Chamar de milagre talvez seja exagero, mas realmente me sinto desse jeito. E se correr todo dia me ajuda a realizar isso, então sou muito grato por correr.
As pessoas às vezes zombam de quem corre todo dia, alegando que é uma tentativa desesperada de viver mais. Mas não acho que esse seja o motivo pelo qual a maioria corre. A maioria dos corredores corre não porque queira viver mais, mas porque quer viver a vida ao máximo. Se você quer desfrutar os anos, é muito melhor vivê-los com objetivos claros e plenamente vivo do que numa bruma, e acredito que correr ajude a fazer isso. Forçar a si mesmo ao máximo dentro de seus limites individuais: essa é a essência de correr, e uma metáfora aplicável à vida - e, para mim, ao ato de escrever, também. Acredito que muitos corredores concordariam."
*
Para mais Murakami, fica a indicação do instigante romance Kafka à beira-mar (Aqui, em edição portuguesa, mas o livro já foi publicado no Brasil pela Alfaguara/Objetiva):



domingo, 26 de maio de 2013

Depois da vida

Você acaba de morrer. Agora deve escolher o momento mais importante de toda a sua vida. Uma equipe irá produzir e filmar o seu momento e essa será a única lembrança que você vai levar por toda a eternidade. Esse é o ponto de partida de Depois da Vida, filme do diretor japonês Hirokazu Kore-eda.
O cenário é uma velha hospedaria e cada pessoa tem a ajuda de uma espécie de guia espiritual. Uma semana entre decidir o momento e terminar o filme, ou acabam presos nesse limbo.
A difícil questão da escolha e o trabalho com a memória revisitada e reconstruída despertam reflexões sobre a vida e a importância de encontrar aquele momento de perfeição dentro de si mesmo ao qual voltar. Bolinhos de arroz no bambuzal depois de um terremoto, a brisa em um passeio de bonde, ruído de sinos na bolsa de uma pessoa especial se aproximando... a vida sintetizada em um único instante de felicidade. O significado e a beleza da existência explorados de maneira poética. Uma bela visão da morte, uma bela visão da vida.



domingo, 19 de maio de 2013

O último voo do flamingo

Conselhos de minha mãe foram apenas silêncios. Suas falas tinham o sotaque de nuvem.
- A vida é que é a mais contagiosa - dizia.

Passou-se o tempo e eu saí da terra nossa, encorajado pelo padre Muhando. Na cidade, eu tinha acesso à carteirinha das aulas. A escola foi para mim como um barco: me dava acesso a outros mundos. Contudo, aquele ensinamento não me totalizava. Ao contrário, mais eu aprendia, mais eu sufocava. Ainda me demorei por anos, ganhando saberes precisos e preciosos.
Na viagem de regresso não seria já eu que voltava. Seria um quem não sei, sem minha infância. Culpa de nada. Só isto: sou árvore nascida em margem. Mais lá, no adiante, sou canoa, a fugir pela corrente; mais próximo sou madeira incapaz de escapar do fogo.

Minha mãe partira na curva da chuva, saindo a habitar a estrela de nenhumas pontas. A partir de então, a vida já não lhe comparecia: ela apanhara o último desencontrão. Ainda lembrei suas palavras amadurecendo uma esperança para mim quando eu de tudo descria:
- Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é assim: está sempre toda por viver.

Aqueles momentos junto ao meu velhote me puxavam para um incerto sono, quem sabe isso que chamam de ternura fosse aquele amaciamento. Esses breves tempos foram, hoje eu sei, a minha única casa. No estuário onde meu velho deitara seu existir eu inventava minha nascente.

Tudo isso eu lembrava quando cheguei à praia de Inhamudzi onde meu velho se exilara. O lugar não era distante e eu viajara mais lembranças que quilômetros. Desta vez, eu vinha quase sem mim, parecia um desqualquerficado. Meus saberes de cidade serviam para quê? Aqueles caminhos tinham serviços que não eram os mesmos das ruas urbanas: pareciam feitos apenas para passarem sonhos e poentes.

- No dia em que deixar de tomar banho.
Era o modo de nomear o dia de sua morte. Falava tudo por enfeite. Pois, nesse dia, dizia Hortênsia, quando estivesse toda por baixo das pálpebras, viessem lhe tirar posses e bens, esvaziassem-lhe a casa como vazia seria sua lembrança. A sua retirada do mundo dos viventes passou a ocupá-la por demasia. Em tudo e nada ela se despedia. Esbanjava adeuses. Saía à casa de banho, ia à cozinha: não se retirava sem as devidas vênias. Encenando o definitivo.

Quando nascemos sabemos tudo, mas não lembramos nada. Depois, crescemos, vamos ganhando lembrança e encolhendo sabedoria.

O tamarindo mais sua sombra: aquilo era feito para abraçar saudades. Minha infância fazia ninho nessa árvore. Em minhas tardes de menino, eu subia ao último ramo como se em ombro de gigante e ficava cego para assuntos terrenos. Contemplava era o que no céu se cultiva: plantação de nuvem, rabisco de pássaro. E via os flamingos, setas rapidando-se furtivas pelos céus. Meu pai sentava em baixo, na curva das raízes, e apontava os pássaros:
- Olha, lá vai mais outro!

- Seu pai não tem comportamento.
O velho Sulplício desvalorizava: sua mãe é como o grilo - tem alergia a silêncios.
E se enganava ao pensar que ele nada fazia. Porque ele, consoante anunciava, andava azafamado.
- Ando aprender a língua dos pássaros.

- Sabe o que dizia sua mãe? Que o melhor lugar para se chorar era a varanda.
E tinha sentido: a varanda. À frente estava o mundo e seus infinitos; atrás estava a casa, o primeiro abrigo. Com um gesto largo, meu velho anunciava o final daquela conversa.

(O último voo do flamingo, Mia Couto)

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Teologia do empreendedorismo

Ao lados das teologias da autoestima e da prosperidade, atualmente reina a teologia do empreendedorismo, em que Deus é substituído pelo Sucesso. O discurso do vitorioso, do bem-sucedido, do empreendedor, aqui desconstruído com o máximo de ironia pelo historiador Leandro Karnal:

Hoje, empreendedorismo é a pedra de toque de todas as pessoas, especialmente no mercado, para entenderem que sucesso e fracasso só podem existir se você não tiver ou não conseguir controlar seu empreendedorismo. Empreendedorismo é a chave do futuro. Empreendedorismo é tudo. Eu vou demonstrar a vocês que a ideia de empreendedorismo, nascida numa divisão tipicamente norte-americana entre winners e losers, a ideia de empreendedorismo é a das ideias teológicas a mais insidiosa, porque traz para dentro de mim a censura. Se eu fracassei a culpa é minha. É a internalização absoluta dessa censura. O sucesso é minha responsabilidade, o fracasso é minha culpa. Ele ajuda as pessoas porque ele estabelece que coragem, ousadia, autoestima, iniciativa, fazem parte do sujeito vitorioso. Isto é o empreendedorismo como processo. O novo homem que atinge a salvação não é mais São Francisco, não é mais Santo Antônio, não é mais Tomás de Aquino, mas é o empreendedor. Ele é o modelo de uma teologia imanente, uma teologia da matéria, que atingindo aquele ponto leva os outros à felicidade.
Este novo homem adquire a salvação mediante sua iniciativa pessoal, tal como o homem medieval, mas não é uma iniciativa pessoal em busca de um além, mas é de um hic et nunc, de um aqui e agora. E o inferno dessa teologia é o fracasso financeiro e pessoal. Para isso, há livros sobre empreendedorismo. Para isso há treinadores pessoais que fazem coach, que ficam dizendo "você precisa confiar em você", "você precisa ter metas", "você precisa se desenvolver", "você precisa colocar essas metas e repetir 'eu posso', 'eu sou vitorioso'". Isso que, há alguns anos seria tido como esquizofrenia ou bipolaridade, hoje é tido como consistência pessoal. O inferno atual é o fracasso. Vai para o inferno quem não tem iniciativa. Vai para o inferno quem não se planeja. Vai para o inferno a pessoa que não tem metas. Vai para o inferno a pessoa pessimista. Este é o inferno atual. Aquele pessimista que possivelmente seria salvo na Idade Média, hoje ele é o condenado.
Nós precisamos estabelecer medidas para esse empreendedor. Há uma nova soteriologia - sotero, em grego, salvador. Há uma nova teologia da salvação. Esta salvação não é mais uma salvação abstrata ou metafísica. Esta salvação é uma nova forma de evitar os seguintes  pecados, pecados que todo RH, que são os novos departamentos teológicos do planeta, sabem: quem não é pró-ativo, quem não colabora com a sinergia da empresa, quem não veste a camiseta, quem não tem metas, quem não recebe aquela notícia "vamos fazer um treinamento sabe lá onde", "oba! É tudo o que eu quero! Que bom! É a coisa que eu mais gosto", e assim por diante, quem não tem criatividade, e assim por diante, quem não sai da caixinha, e outras fórmulas catequético-teológicas. São fórmulas e essas fórmulas são feitas, como toda teologia, para prometer felicidade, como toda teologia, para dizer quem erra, quem é pecador, e como toda teologia, se baseia numa prática em grego, ascesis, ascese, que é a prática teológica. E para isso vocês precisam de atividades e novos cultos, e esses cultos litúrgicos, em qualquer empresa hoje se chamam reuniões. As reuniões, como toda liturgia, tratam de um tema abstrato. Tem que ter fé para acreditar na reunião. Existe um sacerdote oficiante e existe um rito. Este rito tem frases ditas por um e repetidas por todos. Há uns anos era "o Senhor esteja convosco", "Ele está no meio de nós". Hoje é "bem-vindos à nossa reunião" e as pessoas sorriem porque é importante ser feliz. Pelo menos é importante parecer ser feliz para fazer parte da equipe, porque essa não é uma equipe de losers, é uma equipe de winners. Gente vitoriosa cresce.
(...) Dentro dessa ideia do empreendedorismo, é muito curioso que nós nunca fizemos tantas coisas e nunca fomos tão improdutivos na história humana.

(Os velhos e os novos pecados, Leandro Karnal, no Café Filosófico)

terça-feira, 7 de maio de 2013

Clube dos Cinco

Sábado, 24 de março, 1984.
Colégio Shermer.
Shermer, Illionois, 60062.

Caro senhor Vernon,

Aceitamos o fato de que temos que sacrificar um sábado inteiro de castigo pelo que quer que seja que tenhamos feito de errado. O que fizemos foi errado. Mas achamos que o senhor está louco de nos fazer escrever uma redação dizendo quem achamos que somos. O que lhe importa? Você nos vê como quer, nos termos mais simples, nas definições mais convenientes. O senhor nos vê como um cérebro, um atleta, uma neurótica, uma princesa, um marginal. Correto? É assim que nos vemos às sete horas da manhã de hoje. Fizeram lavagem cerebral em nós.

Don't You (Forget About Me) by Simple Minds on Grooveshark

É com esse texto e ao som de "Don't you forget about me" que começa um clássico do cinema: "Clube dos Cinco" (The Breakfast Club). Não se trata de um "Cidadão Kane" ou "Cantando na Chuva", mas mesmo assim um clássico. Do mestre John Hughes. Se o nome não diz nada, talvez pensar em "Curtindo a vida adoidado" (Ferris Bueller's Day Off), outro clássico, ajude.
Falar em anos 80 é falar de John Hughes, nome que se tornou símbolo de uma geração e referência em cultura pop. Mas não é preciso ter vivido nos anos 80 para conhecer ou se identificar com seus filmes. Passar um dia bolando aula com Ferris Bueller é suficiente para virar fã. É praticamente impossível não se contagiar com tanto "teen spirit" em cenas como a do Ferris dançando e dublando "Twist and shout" dos Beatles, num desfile público - uma das sequências mais lembradas do cinema. Hughes soube como ninguém retratar esse espírito, sem ser pretensioso ou inverossímel e sem apelar para estereótipos.
Desconstruir os estereótipos de como os adolescentes são vistos ou vêem a si mesmos é justamente o tema de "Clube do Cinco". Um sábado de castigo na escola coloca cinco pessoas numa situação em que têm que enfrentar e reconhecer suas diferenças, ao mesmo tempo em que descobrem que têm mais em comum do que imaginam. Os conflitos, as angústias, os questionamentos e a diversão do que é ser adolescente, superando os termos mais simples e as definições mais convenientes.



quinta-feira, 2 de maio de 2013

Amor como philia

"'Amamos uma mulher pelo que ela não é', dizia Gainsbourg, 'a deixamos pelo que ela é.' Isso costuma ser verdade e vale também para os homens. Há quase sempre mais verdade no desamor do que no amor, pelo menos nesse amor, fascinado pelo mistério do que ele ama, do que ele não compreende e que lhe falta. Amor engraçado esse, que só ama o que ignora.
Tentemos, porém, compreender o que acontece nos outros casais, os que dão mais ou menos certo, os que dão inveja, os que parecem felizes e ainda parecem se amar, e se amar sempre... A paixão intacta, hoje mais que ontem e bem menos que amanhã? Não acredito nisso, e, ainda que isso acontecesse vez por outra, ou que pudesse acontecer, seria tão raro, tão milagroso, tão independente de nossa vontade, que não poderíamos tomar isso como base de uma opção de vida, nem mesmo de uma esperança razoável. De resto, não corresponde à experiência dos casais em questão, que nada têm de pombinhos e que cairiam na risada, na maioria dos casos, se alguém os comparasse a Tristão e Isolda... Simplesmente esses amantes continuam a se desejar e, por certo, se vivem juntos há anos, é mais potência do que falta, mais prazer que paixão, e quanto ao mais souberam transformar em alegria, em doçura, em gratidão, em lucidez, em confiança, em felicidade por estar juntos, em suma em philia, a grande loucura amorosa do começo. A ternura? É uma dimensão do seu amor, mas não a única. Também há a cumplicidade, a fidelidade, o humor, a intimidade do corpo e da alma, o prazer visitado e revisitado ('o amor realizado do desejo que permanece desejo', como diz Char), há o animal aceito, domesticado, ao mesmo tempo triunfante e vencido, há essas duas solidões tão próximas, tão atentas, tão respeitosas, como que habitadas uma pela outra, como que sustentadas uma pela outra, há essa alegria leve e simples, essa familiaridade, essa evidência, essa paz, há essa luz, o olhar do outro, há esse silêncio, sua escuta, há essa força de ser dois, essa abertura de ser dois, essa fragilidade de ser dois... Constituir apenas um? Faz muito tempo que renunciaram a isso, se é que um dia acreditaram nisso. Amam demais seu duo, com seus harmônicos, seu contraponto, suas dissonâncias às vezes, para querer transformá-lo em impossível monólogo! Passaram do amor louco ao amor sensato, se quisermos, e bem louco seria quem visse nisso uma perda, uma diminuição, uma banalização, quando é ao contrário um aprofundamento, mais amor, mais verdade, e a verdadeira exceção da vida afetiva. O que há de mais fácil de amar do que seu sonho? O que há de mais difícil do que amar a realidade? O que há de mais fácil do que querer possuir? O que há de mais difícil do que saber aceitar? O que há de mais fácil que a paixão? O que há de mais difícil do que o casal? Apaixonar-se está ao alcance de qualquer um. Amar não."

(Pequeno tratado das grandes virtudes, André Comte-Sponville)