E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
(Carlos Drummond de Andrade)
"É muito difícil a pessoa se dar conta de que todos nós, artistas ou não, pessoas pobres ou ricas, nobres ou plebeias, só temos o cotidiano. E o cotidiano de todo mundo é absolutamente ordinário. Ele não é extraordinário. (...) A cada um de nós cabe a vida comum, o cotidiano. E eu tenho absoluta convicção que é atrás, que é através do cotidiano que se revelam a metafísica, a beleza.
(...) A gente quer uma vida heróica. Nós todos aspiramos a uma vida heróica. E fala: 'Deus me livre dessa vidinha minha, uma vidinha sem nenhum encanto'. (...) O cotidiano é na poeira, e para todos nós. E o mais bacana que tem é a gente tirar o nosso heróico, o nosso heroísmo deste cotidiano. (...) O nosso heroísmo é aqui, é no pequenininho, é naquela paciência impossível de ter que eu tenho que ter. Fala: 'Deus me livre lidar com esse doente, com isso, com aquilo. Eu queria viver como...'. E você bota um personagem bem famoso. O personagem não existe. Caiamos na real. Bonita é a nossa vida.
(...) Admirar-se de um bezerro de duas cabeças, qualquer débil mental se admira. Mas admirar-se do que é natural, só quem tá cheio do Espírito Santo. É o outro olhar, é a sensibilidade. E o mundo é magnífico. É bom demais estar vivo, é bom demais. E eu quero essa vidinha. Essa vidinha. Essa é que é a boa. Com todas as chaturinhas dela, as coisas difíceis. Mas é maravilhoso, porque quando você cai nesse lugar aí, você aceita a sua vida. Então você não sai mais à procura de heroísmo extraordinário. (...) Nós todos queremos que a nossa vida, o nosso currículo, tenha um ato heróico, e às vezes o ato heróico de cada vida é o mais anônimo, o mais silencioso, só Deus sabe."
Entrevista com a poeta Adélia Prado no programa Sempre um Papo:
Impressionista
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
Parâmetro
Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto sim, é consolo.
Poema Começado no Fim
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.
Exausto
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Explicação de poesia sem ninguém pedir
Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.
Ensinamento
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
3 comentários:
Também quero ser Adélia!!!!
Que sejamos Adélia, então!!
Que simplesmente estejamos no presente do nosso cotidiano. Com a calma do simples. E a mágica do hoje.
"Quiero estar presente en mi propia vida"
(Para que me quieras - Alejandro Sanz)
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