segunda-feira, 16 de abril de 2012

Quero ser Adélia

E eu não sabia que minha história 
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
(Carlos Drummond de Andrade)

"É muito difícil a pessoa se dar conta de que todos nós, artistas ou não, pessoas pobres ou ricas, nobres ou plebeias, só temos o cotidiano. E o cotidiano de todo mundo é absolutamente ordinário. Ele não é extraordinário. (...) A cada um de nós cabe a vida comum, o cotidiano. E eu tenho absoluta convicção que é atrás, que é através do cotidiano que se revelam a metafísica, a beleza.
(...) A gente quer uma vida heróica. Nós todos aspiramos a uma vida heróica. E fala: 'Deus me livre dessa vidinha minha, uma vidinha sem nenhum encanto'. (...) O cotidiano é na poeira, e para todos nós. E o mais bacana que tem é a gente tirar o nosso heróico, o nosso heroísmo deste cotidiano. (...) O nosso heroísmo é aqui, é no pequenininho, é  naquela paciência impossível de ter que eu tenho que ter. Fala: 'Deus me livre lidar com esse doente, com isso, com aquilo. Eu queria viver como...'. E você bota um personagem bem famoso. O personagem não existe. Caiamos na real. Bonita é a nossa vida.
(...) Admirar-se de um bezerro de duas cabeças, qualquer débil mental se admira. Mas admirar-se do que é natural, só quem tá cheio do Espírito Santo. É o outro olhar, é a sensibilidade. E o mundo é magnífico. É bom demais estar vivo, é bom demais. E eu quero essa vidinha. Essa vidinha. Essa é que é a boa.  Com todas as chaturinhas dela, as coisas difíceis. Mas é maravilhoso, porque quando você cai nesse lugar aí, você aceita a sua vida. Então você não sai mais à procura de heroísmo extraordinário. (...) Nós todos queremos que a nossa vida, o nosso currículo, tenha um ato heróico, e às vezes o ato heróico de cada vida é o mais anônimo, o mais silencioso, só Deus sabe."

Entrevista com a poeta Adélia Prado no programa Sempre um Papo:



Impressionista
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

Parâmetro
Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto sim, é consolo.

Poema Começado no Fim
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

Exausto
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Casamento 
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Explicação de poesia sem ninguém pedir
Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.

Ensinamento
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

3 comentários:

Rosa Marques disse...

Também quero ser Adélia!!!!

Rosa Marques disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Adriana Antolin disse...

Que sejamos Adélia, então!!
Que simplesmente estejamos no presente do nosso cotidiano. Com a calma do simples. E a mágica do hoje.

"Quiero estar presente en mi propia vida"
(Para que me quieras - Alejandro Sanz)