Primeira entrevista com Kundun
Eu voltava à cidade, deixando o cavalo ir passo a passo; e remoia essas ideias. Chegara quase aos arredores de Lhasa, quando me alcançou, esbaforido, um soldado da guarda do corpo. Procuravam-me, em toda a cidade — disse-me ele — e eu tinha de voltar imediatamente ao Palácio de Verão. O meu primeiro pensamento foi que a instalação do cineminha não funcionasse; porque a hipótese do rei, ainda sob tutela, se sobrepor a todas as convenções e mandar-me chamar parecia-me absurda. Dei volta, no mesmo instante e, pouco depois, estava no Norbulingka já então silencioso e sossegado. À porta do jardim esperavam-me alguns monges. Mal me avistaram, puseram-se a pestanejar furiosamente, indicando-me a entrada do jardim interior. Por mais vezes que houvesse passado ali, durante o meu trabalho, nesse momento a idéia de transpor aquele limiar causava-me uma sensação estranha. Nisso, Lobsang Samten veio receber-me; cochichou-me alguma coisa ao ouvido e meteu-me na mão um laço branco. Já não havia dúvida: seu irmão queria ver-me.
Dirigi-me logo para a câmara de projeção. Antes que eu pudesse entrar, puxaram de dentro a porta e eu vi-me diante do Buda vivo. Apesar da surpresa, curvei-me profundamente e apresentei o meu laço branco. Ele tomou-o na mão esquerda e benzeu-me com um gesto impulsivo da direita, um gesto que não se parecia com a cerimoniosa imposição das mãos; dir-se-ia antes a expressão impetuosa do estado de ânimo duma criança que afinal consegue impor a sua vontade. Na sala, aguardavam-me, de cabeça baixa, três abades: os três homens de confiança do rei-deus. Eu os conhecia bem; não vieram receber-me, e não me escapou a frieza com que responderam ao meu cumprimento. Não lhes agradava, naturalmente aquela intrusão nos seus domínios; contudo, nunca ousariam contrariar abertamente o Dalai Lama.
O jovem soberano mostrou-se, pois, tanto mais cordial. Estava radiante; e foi largando as perguntas, uma atrás da outra. Acolhia-me, como um ser humano que, anos a fio, meditou sozinho vários problemas e tem finalmente com quem falar, alguém que ao mesmo tempo responda a tudo. Não me dava tempo para pesar as respostas. Arrastou-me logo para o projetor; queria passar um filme que o interessava desde muito tempo: um documentário da capitulação japonesa. Mandara os abades à sala de espetáculos; eles seriam o público.
(...)
Atravessei o jardim deserto, puxei o ferrolho do largo portão, mal acreditando que estivera quase cinco horas conversando com o rei-deus do país dos Lamas. Um jardineiro fechou o portão atrás de mim; e a guarda — que, entretanto, mudara várias vezes — apresentou-me armas, um tanto intrigada. Pus-me em sela e tomei lentamente o caminho de Lhasa. Não fosse o embrulhinho dos bolos, que me ficara na mão, eu pensaria que fora tudo um sonho. Qual dos meus amigos me prestaria crédito, se eu lhe contasse que passara horas, dialogando a sós com o Buda vivo? Qualquer deles me responderia apenas com um sorriso de piedade, dizendo consigo: "Pobre doido!"
Amigo e mestre do Dalai Lama
Foi para mim verdadeira felicidade a bela missão que se me ofereceu.
Sim, transmitir a esse menino inteligente a ciência e os conhecimentos do mundo afigurava-se-me uma função realmente valiosa.
Nessa mesma noite, procurei revistas que tratassem pormenorizadamente da construção dos caças a jato, assunto em que me vira várias vezes em apuros, na entrevista com o Dalai Lama, e que prometera explicar, na próxima vez, baseando-me em diagramas. Mais tarde, tive de preparar a matéria sobre a qual versaria o nosso diálogo; desejava sistematizar um pouco a avidez de saber do jovem rei. Muitas vezes, o meu plano gorava, porque ele formulava perguntas que nos conduziam a setores muito diferentes; não me restava então senão responder e explicar, conforme podia. Em relação à bomba atômica, por exemplo, tive de explicar os elementos, o que acarretou uma preleção sobre os metais. Para estes, não havia denominações em idioma tibetano; tive, pois, de dar muitos pormenores e, dentro em pouco, as perguntas caíram em cima de mim como uma avalanche.
Assim comecei uma nova vida em Lhasa. A minha existência passou a ter uma finalidade; e eu me livrei da insatisfação, do sentimento de não viver completamente. Não abandonei as minhas ocupações anteriores; continuei a colecionar notícias, a desenhar mapas. Mas os dias me pareciam demasiado curtos e, não raro, eu trabalhava até alta noite. Negligenciava as diversões, os passatempos, porque precisava dispor de tempo, quando o Dalai Lama me mandava chamar. Às reuniões dos meus amigos eu já não chegava de manhã, segundo o costume; só aparecia às últimas horas da tarde. Mas isso não me doía como uma renúncia; eu vivia muito feliz, na consciência de haver encontrado um objetivo. As horas, que passava com o meu régio discípulo, eram muitas vezes tão instrutivas para mim como para ele. Eu ia adquirindo um grande conhecimento da história do Tibete e da doutrina de Buda, setores em que a cultura do Dalai Lama era profunda. Mantínhamos freqüentemente, horas a fio, debates religiosos; e ele estava plenamente convencido de que me converteria ao budismo. Dizia-me que, justamente então, se entregava ao estudo de obras de antiquíssima sabedoria sobre os vários aspectos da separação da alma do corpo. Efetivamente, a história do Tibete menciona muitos santos que tinham o dom de fazer o seu espírito agir a centenas de milhas de distância, enquanto o seu corpo permanecia mergulhado em profunda meditação. O jovem Dalai Lama acreditava que, graças à sua fé e com o auxílio dos ritos prescritos, poderia atuar em localidades distantes, como por exemplo Samye. Quando atingisse esse ponto, mandar-me-ia para lá e, de Lhasa, dirigiria as minhas ações. Lembro-me de que eu me ria e respondia: "Sim, Kundun; quando fizeres isso, eu me tornarei budista".
(Sete anos no Tibet, Heinrich Harrer)
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