segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

À sombra das chuteiras imortais

"Pobres de nós, que não sabemos respeitar as grandes paixões!"
Nelson Rodrigues

Em um domingo incontestavelmente corintiano, com a morte de Sócrates e a vitória no Campeonato Brasileiro, a centelha do meu amor por futebol, que há algum tempo andava um pouco apagada, voltou a me inspirar alguma comoção.
O entusiasmo aumentou com "Poderoso Timão, o filme". Iludida ou alienada, o fato é que não resisti às muitas histórias sobre um time e uma paixão, como à da "invasão corinthiana", "marcha" de 70 mil torcedores paulistas para o Rio de Janeiro, para acompanhar a semifinal do Campeonato Brasileiro de 76, com vitória de 4 x 1 do Corinthians sobre o  Fluminense, nos pênaltis. Ou à da final de 77 sobre a Ponte Preta, após 22 anos sem conquistar o título.
Apesar de não fazer parte do "bando de louco", a emoção corintiana no dia de ontem fez lembrar porque o futebol é fonte de tantas paixões humanas.


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Tomada pela renovada empolgação futebolística, finalmente iniciei a leitura de "À sombra das chuteiras imortais", seleção de crônicas de Nelson Rodrigues, que, em sua prosa poética deliciosa, mostra porque futebol - e literatura! - podem ser tão apaixonantes.
Com tantos textos sedutores, ficou difícil escolher um única crônica para colocar aqui. Seguem três.

Bocage no futebol
Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado de minha casa, um garoto que era tido e havido como o anticristo da rua. Sua idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça: — não havia palavrão que ele não praticasse. Eu, na minha candura pânica, vivia cercado de conselhos, por todos os lados: — “Não brinca com Fulano, que ele diz nome feio!”. E o Fulano assumia, aos meus olhos, as proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema. Mas o tempo passou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o anjo de boca suja estava com a razão. Sim, amigos: — cada nome feio que a vida extrai de nós é um estímulo vital irresistível. Por exemplo: — os nautas camonianos. Sem uma sólida, potente e jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da Cantareira. O que os virilizava era o bom, o cálido, o inefável palavrão.
Mas, se nas relações humanas em geral, o nome feio produz esse impacto criador e libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade: — retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível, Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O craque ou o torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota. Pois bem: — está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano. O craque brasileiro não sabe ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em campo, matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem dopados e realmente o estão: — o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável.
Exagero? Nem tanto, nem tanto. A propósito, vou citar aqui o caso de Jaguaré. No seu tempo, os clubes não tinham Departamento Médico e um jogador podia andar com a boca em petição de miséria, desfraldando cáries gigantescas. Assim era Jaguaré: — não tinha dentes, só cáries. E seu riso sem obturações, docemente alvar, era largo, permanente e terrível. E acontece o seguinte: — a época de Jaguaré coincidiu com a infância do profissionalismo. Morria-se de fome no futebol. O sujeito que tinha para a média, para o pão com manteiga, podia se considerar um Rockefeller, de tanga, mas Rockefeller.
Até que, um dia, apareceu por aqui o emissário de um clube estrangeiro. E o homem esfregou na cara de Jaguaré propostas dignas de um rajá. A princípio, o nosso patrício opôs uma recusa inexpugnável. Não queria aceitar nem por um decreto. Acabou cedendo. Andou pela Espanha e até por Paris. Mas era outro, como homem e como craque. Como jogar sem a pornografia lusobrasileira?
Sem as expressões obscenas que dinamizam, que transfiguram, que iluminam os jogadores? Traduzi-las seria uma traição. E Jaguaré vivia sob a persistente, a dilacerada nostalgia dos nomes feios intransportáveis.
Finalmente, não pôde mais: — voltou correndo para o Brasil. Aqui, agonizou e morreu na mais horrenda miséria. Mas feliz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões terrenos.
[Manchete Esportiva, 14/1/1956]

É chato ser brasileiro!
Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto, vejam vocês: — a vitória final, na Copa da Suécia, operou o milagre. Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo da Suécia veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização
súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com “x” iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: — analfabetos natos e hereditários devoravam vespertinos, matutinos, revistas e liam tudo com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do “lance a lance” da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e, digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.
E a quem devemos tanto? Ao escrete, amigos, ao escrete que, hoje, é o meu personagem da semana, meu múltiplo personagem. Personagem meu, do Brasil e do mundo. Graças aos 22 jogadores, que formaram a maior equipe de futebol da Terra em todos os tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o Brasil descobriu-se a si mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a vitória nos seus limites estritamente esportivos. Ilusão! Os 5 x 2, lá fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triunfo vital de todos nós e de cada um de nós. Do presidente da República ao apanhador de papel, do ministro do Supremo ao pé-rapado, todos aqui percebemos o seguinte: — é chato ser brasileiro!
Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional. E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: — o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas.
Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em todas as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: — que éramos nós? Uns humildes. O brasileiro fazia-me lembrar aquele personagem de Dickens que vivia batendo no peito: — “Eu sou humilde! Eu sou o sujeito mais humilde do mundo!”. Vivia desfraldando essa humildade e a esfregando na cara de todo mundo. E, se alguém punha em dúvida a sua humildade, eis o Fulano esbravejante e querendo partir caras. Assim era o brasileiro. Servil com a namorada, com a mulher, com os credores. Mal comparando, um são Francisco de Assis, de camisola e alpercatas.
Mas vem a deslumbrante vitória do escrete e o brasileiro já trata a namorada, a mulher, os credores de outra maneira; reage diante do mundo com um potente, um irresistível élan vital. E vou mais além: — diziam de nós que éramos a flor de três raças tristes. A partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios. Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. Na pior das hipóteses, somos uns ex-buchos.
E a quem devemos tanto? Ao meu personagem da semana. Ninguém aqui admitia que fôssemos os “maiores” em futebol. Rilhando os dentes de humildade, o brasileiro já não se considerava o melhor nem de cuspe à distância. E o escrete vem e dá um banho de bola, um show de futebol, um baile imortal na Suécia. Como se isso não bastasse, ainda se permite o luxo de vencer de goleada a última peleja. Foi uma lavagem total.
Outra característica da jornada: — o brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: — o verdadeiro inglês, o único inglês, é o brasileiro.
[Manchete Esportiva, 12/7/1958]

A vingança de Julinho
Amigos, Julinho começou a ser o meu personagem da semana a partir do momento em que o vaiaram. Foi até, se me permitem a expressão, trágico. Insisto: — trágico! Quem estava lá viu ou, por outra, ouviu. No instante em que o alto-falante do Maracanã anunciou Julinho em lugar de Garrincha, o estádio entupido foi uma vaia só. Menos eu. Eis a verdade: — eu não apupei, embora preferisse Garrincha. Parecia-me que o escrete sem o “seu” Mané era um mutilado. Na pior das hipóteses, eu achava que Feola devia ter posto os dois: Julinho na ponta direita e Garrincha na esquerda.Mas um técnico tem razões que a razão desconhece. Puseram só Julinho e esqueceram Garrincha.
Verificou-se, então, o amargo e ululante desagrado da multidão. Naquele momento, ninguém se lembrou, no Maracanã e fora dele, de quem é Julinho na história do futebol brasileiro. Sim, amigos: — o homem andou pela Itália e quando voltou nós o olhamos, de alto a baixo, como se fosse um gringo qualquer ou, pior do que isso, como se fosse um perna-de-pau. Não há nada mais relapso do que a memória. Atrevo-me mesmo a dizer que a memória é uma vigarista, uma emérita falsificadora de fatos e de figuras. Por exemplo: — ninguém se lembrava de que, no Mundial da Suíça, contra os húngaros, Julinho fizera um carnaval medonho. De certa feita, driblara toda a defesa contrária para finalizar com uma bomba, e que bomba! O arqueiro nem viu por onde a bola entrou. Esse gol foi uma obra-prima e devia estar numa vitrine de turismo, para a admiração pateta dos visitantes. Pois bem: — ao ser anunciada a escalação de Julinho, a nossa memória apresentou-nos a imagem não autêntica, não fidedigna do craque, mas de um quase penetra do escrete.
Ao ouvir o apupo, eu fui um pouco oracular para mim mesmo. Imaginei o seguinte vaticínio: — “Julinho vai comer a bola!”. Podia parecer uma piada e, no entanto, era uma grave profecia. Eis a verdade: — para o jogador de caráter uma vaia é um incentivo fabuloso, um afrodisíaco infalível. Imagino que Julinho há de ter entrado em campo crispado da cabeça aos sapatos ou, retifico, às chuteiras. Nunca um craque foi tão só. Era um único contra 200 mil.Mas, homem de brio indomável, Julinho aceitou a luta: — bateu-se contra a multidão que o cercava por todos os lados, disposta a crucificá-lo em outras vaias. Mas, se nós tínhamos esquecido Julinho, Julinho não estava esquecido de si mesmo. Foi Julinho em cada um dos 45 minutos, foi sempre Julinho e só Julinho. Em inúmeras ocasiões o que ele fez com o adversário foi pior que xingar a mãe. E o primeiro gol, ah, o primeiro gol! Ele o marcou contra os ingleses, sim, mas também contra os que o vaiaram. Enfiou a bola de uma maneira, por assim dizer, sádica. Jamais houve um gol tão amorosamente sofrido como este. A partir da abertura da contagem, todo mundo passou a reconhecê-lo, todo mundo admitiu para si mesmo: — “Este é o Julinho!”. E era.
Ele não parou mais. Aquela multidão se arremessara contra ele como um touro enfurecido. Pois bem: — ele agarra o touro a unha e lhe quebra os chifres. Então, aconteceu o milagre. O ex-touro brabo, já manso, tornou-se em outro bicho. Sim, amigos: — do primeiro gol em diante, a multidão transformou-se em macaca-de-auditório” de Julinho. Se ele apanhava a bola, os 200 mil espectadores arreganhavam o riso enorme e já gozavam, por antecipação, o que Julinho iria fazer. Vejam vocês as ironias da vida e do futebol: — de um momento para outro, o vaiado, o apupado, o quase cuspido, transformava-se num triunfador. E, de fato, Julinho foi grande. Nos pés de Julinho a jogada se enfeitava como um índio de Carnaval. De certa feita, comeu um, dois, três, quatro e quase entrou com bola e tudo. Imagino que, nesse momento, lord Nelson há de ter perguntado, lá do alto, para o mais próximo companheiro de eternidade: — “Quem é esse cara?”. O “cara” era Julinho, sempre Julinho.
Assim é o brasileiro de brio. Dêem-lhe uma boa vaia e ele sai por aí, fazendo milagres, aos borbotões. Amigos, cada jogada de Julinho foi exatamente isto: — um milagre de futebol.
[Manchete Esportiva, 16/5/1959]

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