sexta-feira, 29 de abril de 2011

Do Amor

Não amar quando se recebeu do céu uma alma feita para o amor é
privar-se a si mesma e a outrem de uma grande felicidade. (Stendhal)

Retomei a leitura de um tema que já foi o meu favorito: o Amor. Além de busca apaixonada, o sentimento constituía, para mim, um questionamento filosófico sério. Não queria apenas encontrar e viver o amor, mas compreendê-lo. Eram as minhas três grandes questões: a Vida, a Morte e o Amor.
Acho que talvez tenha me concentrado na Vida e acabei deixando o Amor - pelo menos, o amor romântico - de lado. Com o tempo, passou a figurar apenas como mais uma ilusão - talvez a mais bela e prazerosa de todas...
A motivação para a retomada nasceu de uma razão muito prática: a resolução de finalmente ler, de fato, todos os livros que tenho (sabe aquela mania de comprar um monte de livro e sempre adiar a leitura? Pois assumi um compromisso comigo mesma de não adquirir nem mais um volume até dar conta de todos que já possuo, e como muitos na minha estante tratam deste assunto...).
De início, resisti, para não simpatizar tanto com o tema novamente, pelo menos não da maneira quase obsessiva de antigamente. Por outro lado, pensei que seria interessante retomar a questão com um certo distanciamento, procurando compreender o conceito do amor da forma mais objetiva possível. Seria estudar a anatomia do amor por si, e não o amor para mim. Mal tem início a empreitada e a pretensão da distância e da objetividade já vai caindo por terra. É quase impossível não me apaixonar pelo Amor...

*

Pois bem. Começo com Do Amor, de Stendhal. A partir do conceito de cristalização, o escritor francês disseca todos os pormenores do amor, apresentando um quadro bem real do sentimento a que todos os homens estão sujeitos, seja por admiração, arrebatamento sincero ou simples vaidade.

Do nascimento do amor
Eis o que se passa na alma:
1º A admiração.
2º Dizemo-nos: "Que prazer dar-lhe beijos, recebê-los! etc."
3º A esperança.
Estudamos as perfeições; é neste momento que a mulher deveria entregar-se, para o maior prazer físico possível. Mesmo entre as mulheres mais reservadas, os olhos se acendem no momento da esperança; a paixão é tão forte e o prazer tão intenso, que se trai através de sinais impressionantes.
4º O amor nasceu.
Amar é ter prazer em ver, tocar, sentir por todos os sentidos, e do modo mais próximo possível, um objeto amável e que nos ama.
5º A primeira cristalização começa.
Sentimos prazer em ornar de mil perfeições uma mulher de cujo amor temos certeza; passamos em revista toda a nossa felicidade com um complacência infinita. Isso se resume em exagerar uma propriedade soberba, que acaba de nos cair do céu, que não conhecemos e cuja posse nos é assegurada.
Deixem a cabeça de um amante funcionar durante vinte e quatro horas e eis o que encontrarão.
Nas minas de sal de Salzburgo, joga-se nas profundezas abandonadas da mina um ramo de árvore desfolhado pelo inverno; dois ou três meses depois, ele é retirado coberto de cristalizações brilhantes: os menores raminhos, aqueles que não são maiores do que a pata de um chapim, são guarnecidos de uma infinidade de diamantes móveis e cintilantes; já não podemos reconhecer o ramo primitivo.
Chamo de cristalização a operação do espírito que extrai de tudo o que se apresenta a descoberta de que o objeto amado tem novas perfeições.
(...) Este fenômeno, que me permito chamar de cristalização, provém da natureza que nos ordena ter prazer e que nos envia sangue ao cérebro, do sentimento de que os prazeres aumentam com as perfeições do objeto amado, e da idéia: ela é minha.

Apesar de ser um texto datado, refletindo os costumes e comportamentos de uma época (a Europa, e, mais especificamente, a França do início do século XIX), é possível perceber o quanto as descrições e pormenores ainda são válidos e verdadeiros nos dias atuais. O tom vai da ironia fina à confissão apaixonada.
Se, em alguns momentos, Stendhal parece zombar dos amantes, é a defesa do amor que se sobressai.

Quando existe a perfeita naturalidade, a felicidade de dois indivíduos chega a se confundir. Graças à simpatia e a várias outras leis de nossa natureza, ela é simplesmente a maior felicidade que possa existir.
Não deixa de ser fácil determinar o sentido da palavra naturalidade, condição necessária da felicidade pelo amor.
Chamamos naturalidade ao que não se afasta da maneira habitual de agirmos. Não é preciso dizer que não apenas nunca devemos mentir para quem amamos, como também não devemos embelezar o mínimo que seja e alterar a pureza de traços da verdade. Pois, quando embelezamos, a atenção se ocupa em embelezar e já não responde ingenuamente, como o toque de um piano, ao sentimento que se mostra nos olhos. Logo ela se dá conta disso por certa frieza que sente, e por sua vez recorre à faceirice. Talvez seja esta a razão oculta por que não podemos amar uma mulher de espírito muito inferior. Ao seu lado podemos fingir impunemente, e como fingir é mais cômodo, por causa do hábito, entregamo-nos à falta de naturalidade. A partir daí o amor já não é amor e passa a não ser nada mais do que um negócio comum: a única diferença é que em vez de dinheiro ganhamos prazer ou vaidade, ou uma mistura dos dois. Mas é difícil deixar de sentir um pouco de desprezo por uma mulher para quem podemos representar impunemente e, por conseguinte, para abandoná-la só nos falta encontrar algo melhor. O hábito ou os juramentos podem prender, mas refiro-me à inclinação do coração, cuja tendência natural é voar para o maior prazer.

*

No apêndice do livro, Stendhal fala sobre as curiosas cortes de amor, cortes que existiram na França, no século XII, presididas por mulheres que discutiam e julgavam questões de amor. As cortes seguiam as determinações de um não menos curioso Código de Amor. São, ao todo, trinta e um artigos:
I. A alegação de casamento não é desculpa legítima contra o amor.
II. Quem não sabe ocultar não sabe amar.
III. Ninguém pode entregar-se a dois amores.
IV. O amor sempre pode crescer ou diminuir.
V. Não tem sabor o que um amante toma à força do outro amante.
VI. De ordinário, o macho só ama em plena puberdade.
VII. Prescreve-se a um dos amantes, por ocasião da morte do parceiro, uma viuvez de dois anos.
VIII. Ninguém, sem uma razão mais do que suficiente, deve ser privado de seu direito em amor.
IX. Ninguém poderá amar se não for envolvido pela persuasão de amor (pela esperança de ser amado).
X. Geralmente o amor é expulso de casa pela avareza.
XI. Não convém amar aquela que teríamos vergonha de desejar em casamento.
XII. O verdadeiro amor só deseja as carícias feitas por quem ele ama.
XIII. Amor divulgado raramente dura.
XIV. O êxito fácil demais logo tira o encanto do amor: os obstáculos aumentam-lhe o valor.
XV. Todo aquele que ama empalidece à vista de quem ama.
XVI. Trememos ao ver de modo imprevisto quem amamos.
XVII. Novo amor expulsa o antigo.
XVIII. Só o mérito torna digno de amor.
XIX. O amor que se extingue logo cai e raramente se levanta.
XX. Quem ama é sempre temeroso.
XXI. Pelo verdadeiro ciúme a afeição de amor cresce continuamente.
XXII. Pela suspeita e pelo ciúme que dela deriva cresce a afeição de amor.
XXIII. Menos dorme e menos come quem é assaltado por pensamento de amor.
XXIV. Tudo o que o amante faz termina em pensar em quem ama.
XXV. O verdadeiro amor só acha bom o que sabe agradar à pessoa amada.
XXVI. O amor nada pode recusar ao amor.
XXVII. O amante não pode saciar-se do gozo de quem ama.
XXVIII. Uma débil presunção faz com que o amante suspeite de coisas sinistras na pessoa amada.
XXIX. O muito excessivo hábito dos prazeres impede o nascimento do amor.
XXX. Uma pessoa que ama está constante e ininterruptamente ocupada com a imagem do ser amado.
XXXI. Nada impede que uma mulher seja amada por dois homens, e um homem por duas mulheres.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Beautiful boy

Life is what happens to you
While you're busy making other plans











(John Lennon)

Close your eyes
Have no fear
The monster's gone
He's on the run and your daddy's here

Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy

Before you go to sleep
Say a little prayer
Every day in every way
It's getting better and better

Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy

Out on the ocean sailing away
I can hardly wait
To see you come of age
But I guess we'll both just have to be patient
'Cause it's a long way to go
A hard row to hoe
Yes it's a long way to go
But in the meantime

Before you cross the street
Take my hand
Life is what happens to you
While you're busy making other plans

Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy

Before you go to sleep
Say a little prayer
Every day in every way
It's getting better and better

Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Darling, darling, darling
Darling Sean


segunda-feira, 25 de abril de 2011

Os frágeis rostos da identidade

"A noção de 'pessoa' inclui a imagem que temos de nós mesmos. A ideia da nossa identidade, da nossa posição na vida, se encontra ancorada na mente e influi de forma constante nas nossas relações com os outros. Quando uma conversa toma um mau caminho, não é tanto o tema da conversa o que nos incomoda, mas o questionamento da nossa identidade. Qualquer palavra que ameaça a imagem que temos de nós mesmos se torna insuportável, enquanto o mesmo qualificativo aplicado a outro, em circunstâncias diferentes, apenas nos afeta. Se alguém tem uma imagem forte de si mesmo, tentará constantemente assegurar-se de que seja reconhecida e aceita. Não há nada mais doloroso do que vê-la colocada em dúvida.
Mas que valor tem esta identidade? É interessante lembrar que 'personalidade' vem de persona, que em latim significa 'máscara'. A máscara 'através' da qual o ator faz 'ressoar' (sonat) seu papel. Enquanto o ator sabe que leva uma máscara, com frequência esquecemos de distinguir entre o papel que representamos na sociedade e nossa natureza profunda.
(...) Normalmente, tememos abordar o mundo sem referências e nos dá vertigem quando chega o momento em que caem as máscaras e os qualificativos: se já não sou músico, escritor, funcionário, culto, bonito ou forte, quem sou? No entanto, não levar nenhuma etiqueta é a melhor garantia de liberdade e a maneira mais flexível, leve e alegre de passar pelo mundo."

(Em defesa da felicidadeMatthieu Ricard)

domingo, 24 de abril de 2011

Na natureza selvagem

(Jon Krakauer)

Àquela altura, Chris partira havia muito tempo. Cinco semanas antes, enfiara todas as suas coisas em seu pequeno carro e zarpara para o oeste, sem destino. A viagem seria uma odisséia no pleno sentido do termo, uma jornada épica que mudaria tudo. Ele passara os quatro anos anteriores, tal como via as coisas, preparando-se para cumprir um dever oneroso e absurdo: graduar-se na faculdade. Finalmente estava desimpedido, emancipado do mundo sufocante de seus pais e pares, um mundo de abstração, segurança e excesso material, um mundo em que ele se sentia dolorosamente isolado da pulsação vital da existência.
Saindo de Atlanta para o oeste, pretendia inventar uma vida totalmente nova para si mesmo, na qual estaria livre para mergulhar na experiência crua, sem filtros. Para simbolizar a ruptura completa com sua vida anterior, adotou um nome novo. Não mais atenderia por Chris McCandless; era agora Alexander Supertramp, senhor de seu próprio destino.

Dois anos ele caminha pela terra. Sem telefone, sem piscina, sem animal de estimação, sem cigarros. Liberdade definitiva. Um extremista. Um viajante estético cujo lar é a estrada. Fugido de Atlanta, não retomarás, porque "o Oeste é o melhor". E agora depois de dois anos errantes chega à última e maior aventura. A batalha final para matar o ser falso interior e concluir vitoriosamente a revolução espiritual. Dez dias e noites de trens de carga e pegando carona trazem-no ao grande e branco Norte. Para não mais ser envenenado pela civilização, ele foge e caminha sozinho sobre a terra para perder-se na natureza selvagem.
Alexander Supertramp, Maio de 1992

"É possível que este seja o mesmo Alex que partiu em julho de 1990? A desnutrição e a estrada fizeram estragos em seu corpo. Mais de dez quilos perdidos. Mas seu espírito está nas alturas".

“Morou nas ruas com vadios, vagabundos e bêbados durante várias semanas. Vegas, no entanto, não seria o fim da história. A 10 de maio, a comichão nos pés voltou e Alex largou seu emprego na cidade de Vegas, recuperou sua mochila e retomou à estrada, embora tenha descoberto que, se você é estúpido o suficiente para enterrar uma câmera, não vai tirar muito mais fotografias depois. Assim, a história não tem álbum de fotos para o período que vai de 10 de maio de 1991 a 7 de janeiro de 1992. Mas isso não é importante. É nas experiências, nas lembranças, na grande e triunfante alegria de viver na mais ampla plenitude que o verdadeiro sentido é encontrado. Meu Deus, como é bom estar vivo! Obrigado. Obrigado.”

Gostaria de repetir o conselho que lhe dei antes: acho que você deveria realmente promover uma mudança radical em seu estilo de vida e começar a fazer corajosamente coisas em que talvez nunca tenha pensado, ou que fosse hesitante demais para tentar. Tanta gente vive em circunstâncias infelizes e, contudo, não toma a iniciativa de mudar sua situação porque está condicionada a uma vida de segurança, conformismo e conservadorismo, tudo isso que parece dar paz de espírito, mas na realidade nada é mais maléfico para o espírito aventureiro do homem que um futuro seguro. A coisa mais essencial do espírito vivo de um homem é sua paixão pela aventura. A alegria da vida vem de nossos encontros com novas experiências e, portanto, não há alegria maior que ter um horizonte sempre cambiante, cada dia com um novo e diferente Sol.
(...) Você está errado se acha que a alegria emana somente ou principalmente das relações humanas. Deus a distribuiu em toda a nossa volta. Está em tudo e em qualquer coisa que possamos experimentar. Só temos de ter a coragem de dar as costas para nosso estilo de vida habitual e nos comprometer com um modo de viver não convencional.
O que quero dizer é que você não precisa de mim ou de qualquer outra pessoa em volta para pôr esse novo tipo de luz em sua vida. Ele está simplesmente esperando que você o pegue e tudo que tem a fazer é estender os braços. A única pessoa com quem você está lutando é você mesmo e sua teimosia em não entrar em novas situações.

Tudo mudara subitamente - o tom, o clima moral; não sabias o que penar; a quem ouvir. Como se em toda a tua vida tivesses sido conduzido pela mão como uma criança pequena e de repente tivesses de ficar por tua própria conta, tinhas de aprender a andar sozinho. Não havia ninguém por perto, nem família nem pessoas cujo julgamento respeitasses. Em tal momento, sentias a necessidade de dedicar-te a algo absoluto - vida, verdade, beleza -, de ser regido por isso, em lugar das regras feitas pelos homens que tinham sido descartadas. Precisavas render-te a um tal objetivo último de modo mais pleno, mais sem reservas do que jamais fizeras nos velhos dias familiares e tranqüilos, na velha vida que estava agora abolida e abandonada para sempre.
Boris Pasternak, Doutor Jivago
Trecho sublinhado em um dos livros encontrados com os restos de Chris McClandless
"NECESSIDADE DE UM OBJETIVO", estava escrito com a letra de McClandles na margem acima do trecho.

Nas últimas páginas do livro que lhe servia de diário, declarou:
Renasci. Esta é minha aurora. A vida verdadeira apenas começou.
Viver deliberadamente: atenção consciente ao básico da vida e uma atenção constante ao meio ambiente imediato e o que lhe diz respeito, exemplo - um emprego, uma tarefa, um livro; tudo exigindo concentração eficiente. (Circunstância não tem valor. É como a gente se relaciona com uma situação que tem valor. Todo significado verdadeiro reside na relação pessoal a um fenômeno, o que ele significa para você.)
A Grande Santidade da COMIDA, o Calor Vital.
Positivismo, a Insuperável Alegria da Estética da Vida.
Verdade Absoluta e Honestidade.
Realidade.
Independência.
Finalidade - Estabilidade - Consistência.

A 2 de julho, terminou de ler "Felicidade familiar", de Tolstoi, tendo marcado vários trechos que o emocionaram:
Ele tinha razão ao dizer que a única felicidade certa na vida é viver para os outros...
Passei por muita coisa na vida e agora penso que encontrei o que é necessário para a felicidade. Uma vida tranqüila e isolada no campo, com a possibilidade de ser útil à gente para quem é fácil fazer o bem e que não está acostumada que o façam; depois trabalhar em algo que se espera tenha alguma utilidade; depois descanso, natureza, livros, música, amor pelo próximo - essa é a minha idéia de felicidade. E depois, no topo de tudo isso, você como companheira, e filhos talvez - o que mais pode o coração de um homem desejar?

Seria fácil estereotipar Christopher McCandless como mais um garoto com sensibilidade demais, um jovem maluco que lia livros em demasia e não tinha um mínimo de bom senso. Mas o estereótipo não se encaixa. McCandless não era um indolente incapaz, perdido e confuso, torturado por desespero existencial. Ao contrário: sua vida estava cheia de significados e propósitos. Mas o significado que ele tirava da existência estava longe do caminho confortável: ele não confiava no valor das coisas que vêm facilmente. Exigia muito de si mesmo mais, no final, do que podia dar.
Tentando explicar o comportamento heterodoxo de McCandless algumas pessoas deram ênfase ao fato de que, tal como John Waterman, era de estatura baixa e talvez tivesse "complexo de baixinho", uma insegurança fundamental que o levou a provar sua masculinidade por meio de desafios físicos extremos. Outros afirmaram que um conflito edípico não resolvido estava na raiz de sua odisséia fatal. Embora possa haver alguma verdade em ambas as hipóteses, esse tipo de psicanálise póstuma de almanaque é uma iniciativa duvidosa e altamente especulativa que degrada e banaliza inevitavelmente o analisando ausente. Não está claro o que se ganha reduzindo a estranha busca espiritual de McCandless a uma lista de distúrbios psicopatológicos.

Acabara de ler Doutor Jivago, um livro que o incitara a rabiscar notas entusiasmadas nas margens e sublinhar vários trechos:
Lara caminhou ao lado dos trilhos, seguindo uma trilha gasta pelos peregrinos, e depois entrou nos campos. Ali parou e, fechando os olhos, respirou fundo o ar perfumado pelas flores da vastidão em tomo dela. Aquilo era mais querido para ela do que seus parentes, melhor que um amante, mais sábio que um livro. Por um instante, redes cobriu o objetivo de sua vida. Estava aqui na terra para captar o sentido desse encantamento selvagem e chamar cada coisa por seu nome certo, ou, se não fosse capaz disso, dar à luz, por amor à vida, sucessores que o fariam em seu lugar.
"NATUREZA/PUREZA", grafou em negrito no alto da página.
Oh, como se deseja às vezes escapar da estupidez sem sentido da eloqüência humana, de todas aquelas frases sublimes, para se refugiar na natureza, aparentemente tão inarticulada, ou na ausência de palavras da labuta longa e pesada, do sono saudável, da verdadeira música, ou de uma compreensão humana tomada muda pela emoção!
Ao lado de "E assim se concluiu que somente uma vida semelhante à vida daqueles ao nosso redor, mesclando-se a ela sem murmúrio, é vida genuína, e que uma felicidade não compartilhada não é felicidade. [...] E isso era o mais perturbador de tudo", ele escreveu: "FELICIDADE SÓ REAL QUANDO COMPARTILHADA".

*
Mais Na natureza selvagem em Filosofia de vida e Muito além da análise.

domingo, 17 de abril de 2011

Muito além da análise

Já falei sobre o filme "Na natureza selvagem" aqui antes, mas acredito que o evento de ontem merece mais uma postagem. O Núcleo de Psicanálise da UniSantos voltou a realizar o Ciclo de Cinema: apresentação de um filme, seguida de discussão com convidados. Sendo o "Olhar da Psicanálise", dava para suspeitar o que viria...
Depois de pouco mais de duas horas de uma história incrível, imagens fantásticas, trilha sonora inspiradora e muita emoção, vieram a discussão e, acreditem, a análise psicológica do personagem principal, Christopher McCandless! Juro que as palavras "patologia", "incapacidade de desenvolvimento afetivo" e "falta de identificação com as figuras parentais" foram usadas. Fiquei passada! Os comentários, em sua maioria, se limitavam a aludir aos problemas familiares e a lamentar o que chamavam de "tragédia anunciada" e a vida perdida de um rapaz um tanto desmiolado. A ideia por trás era a de que ele não precisava arriscar sua vida só para fugir dos pais e da sua inabilidade de encarar a dor e os relacionamentos humanos. Uma senhora, que se declarou budista, disse que ele foi muito extremista e que deveria ter escolhido o "caminho do meio"!
A idolatria do ego e a redução da existência humana ao histórico familiar e pessoal e às tendências psicológicas! Será que a pergunta "quem sou eu?" se reduz a isso?
Com todo o respeito que tenho por psicológos (!), conseguiram acabar com o filme (melhor dizendo, teriam conseguido, não fosse o filme tão bom, independente de qualquer análise...). A história, para mim, mostra uma pessoa perfeitamente lúcida, que é capaz de perceber todas as ilusões e o vazio dos papéis e padrões sociais de que é cercada, e, numa atitude de coragem (e não de fuga!), transcende sua condição original e decide viver sem toda a bobagem de que a tal sociedade é feita. No meio de tanta cegueira, Christopher McCandless/Alexander Supertramp (meu Deus, ele era um esquizofrênico!) é o que consegue ver além das aparências e viver uma vida realmente autêntica, livre de todas as identificações e dependências (inclusive, ou principalmente, as psicológicas) e apego ao que é familiar e confortável (principalmente do ponto de vista psicológico). Ele consegue simplesmente Ser.
(Acredito que isso de Ser não é para aqueles que se prendem às explicações psicológicas - sejam elas boas ou más, acertadas ou totalmente equivocadas - da própria vida e da tal personalidade (não é ótimo ter uma? se for forte, então, melhor ainda!) e passam a viver somente em função delas, se definindo apenas em termos do que viveram e do que isso significa).
Mas nem tudo foi análise psicológica no evento de ontem. O jornalista, documentarista e professor Eduardo Rajabally lançou uma luz bem mais interessante sobre o filme. A partir da etimologia da palavra "experiência" (ligada tanto às palavras "provar" e "experimentar", quanto a "perigo"), ele falou sobre o significado de passar pelas situações e circunstâncias da vida e sair delas modificado. E esta é a beleza deste road movie. A estrada, o caminho, a travessia, os limites são os meios externos para uma jornada interior de transformação e descobertas.
Num mundo organizado em torno de brinquedos tecnológicos (quem vive sem seu celular ou seu iPod?), em que velocidade, volume de informação e muita opinião ditam o ritmo, a vida humana parece ter sido esvaziada de experiências. "Informação é o contrário de experiência" porque só conseguimos apreender os dados do mundo a partir de experiências alheias. "A ciência transformou o mundo da experiência no mundo do experimento". E neste esvaziamento das experiências humanas autênticas, nós passamos pela "estrada" de olhos vendados, apenas acumulando condicionamentos e conceitos inúteis sobre nós mesmos. "É por isso que filmes como esse são perturbadores. Porque nos fazem perceber que falta alguma coisa na nossa vida".
"Nós queremos fazer a mesma viagem que ele fez, mas queremos ir de CVC". Pois é! Quem tem coragem de abandonar o que é familiar em busca de algo maior? Quem é que tem coragem de Ser?

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Aprendiz de Alberto Caeiro

Hoje, Marcéu e eu demos o nosso primeiro passeio no parque. A intenção era fazer ele dormir depois do almoço. Marcéu é o meu sobrinho lindo, de quase um ano, filho da minha irmã, que escolheu esse nome porque queria juntar o mar e o céu em uma só pessoa. Os pais da cantora Ceumar tiveram a mesma ideia. Eu brincava com a minha irmã, dizendo que ele seria a linha do horizonte. ..
Dia de outono perfeito, com sol, céu azul e brisa fresquinha. O passeio pelo Parque Ipupiara (a Praça 22 de Janeiro, lugar que marcou a minha infância) foi um deslumbre para os olhos. Os do Marcéu e, por causa dele, os meus também. Tudo chamava a atenção, tudo tinha o seu encanto. As árvores, os pássaros, os peixinhos, os anões e a Branca de Neve, os cachorros que passavam, as crianças que brincavam. Até aquele monstro horrível do Ipupiara se tornou uma atração.
Depois, fomos até a Biquinha. O Marcéu, que, no parque, já tinha gostado muito do Benedito Calixto, então se encantou com o Padre Anchieta. E pediu pela água fresca da bica, saída da boca de um leão e servida na mão em conchinha.
Seguimos para o deque dos pescadores. Mais atrações irresistíveis para os olhos. O mar, os barquinhos, as gaivotas e garças no céu, os pescadores e as varas de pescar. Fascinado, ele tentava compreender aquele negócio com fio comprido que era lançado para trás e arremessado para frente com uma bola colorida na ponta.
No último trecho do caminho de volta para casa, o Marcéu dormiu. Deve ter sonhado com árvores e pássaros e peixes e varas de pescar...
Dia de prazer puro e simples. Lição de olhar e ver tudo muito bem. Como o Alberto Caeiro, para quem aprender a ver (e desaprender a pensar) é a maior filosofia. Não é à toa que ele é considerado mestre por Álvaro de Campos, outro heterônimo de Fernando Pessoa. Hoje, os aprendizes fomos nós, mas desconfio que o mestre, no fundo, no fundo, tenha aprendido essa lição com os pequenos...

*

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

(Poema II, do livro O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro)

*

(Comentário à parte... Depois, tenho que escrever também sobre o Miguel, meu outro sobrinho lindo, de 5 anos, filho do meu irmão. Já falei aqui sobre o meu "rei da piscina", mas ultimamente ele anda mais para caçador de aranhas e super-herói da Marvel... Digo isso porque descobri que, quando se trata de sobrinhos, tudo o que a gente faz para um, tem que fazer para o outro, mesmo que seja mordida no pé ou ataque de cócegas...
Mais um comentário. Com estas duas criaturinhas enchendo nossa vida de amor e alegria, minha mãe deu para me perguntar quando vai ser a minha vez. Falta uma neta, é o que ela diz. Bom, não sei quando vai ser a minha vez, nem sequer se eu vou ter vez. Mas é com alegria e gratidão que digo que, no momento atual da minha vida, não só fiquei para titia, mas simplesmente nasci para ser a tia do Miguel e do Marcéu.)