Não amar quando se recebeu do céu uma alma feita para o amor é
privar-se a si mesma e a outrem de uma grande felicidade. (Stendhal)
Acho que talvez tenha me concentrado na Vida e acabei deixando o Amor - pelo menos, o amor romântico - de lado. Com o tempo, passou a figurar apenas como mais uma ilusão - talvez a mais bela e prazerosa de todas...
A motivação para a retomada nasceu de uma razão muito prática: a resolução de finalmente ler, de fato, todos os livros que tenho (sabe aquela mania de comprar um monte de livro e sempre adiar a leitura? Pois assumi um compromisso comigo mesma de não adquirir nem mais um volume até dar conta de todos que já possuo, e como muitos na minha estante tratam deste assunto...).
De início, resisti, para não simpatizar tanto com o tema novamente, pelo menos não da maneira quase obsessiva de antigamente. Por outro lado, pensei que seria interessante retomar a questão com um certo distanciamento, procurando compreender o conceito do amor da forma mais objetiva possível. Seria estudar a anatomia do amor por si, e não o amor para mim. Mal tem início a empreitada e a pretensão da distância e da objetividade já vai caindo por terra. É quase impossível não me apaixonar pelo Amor...
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Pois bem. Começo com Do Amor, de Stendhal. A partir do conceito de cristalização, o escritor francês disseca todos os pormenores do amor, apresentando um quadro bem real do sentimento a que todos os homens estão sujeitos, seja por admiração, arrebatamento sincero ou simples vaidade.
Do nascimento do amor
Eis o que se passa na alma:
1º A admiração.
2º Dizemo-nos: "Que prazer dar-lhe beijos, recebê-los! etc."
3º A esperança.
Estudamos as perfeições; é neste momento que a mulher deveria entregar-se, para o maior prazer físico possível. Mesmo entre as mulheres mais reservadas, os olhos se acendem no momento da esperança; a paixão é tão forte e o prazer tão intenso, que se trai através de sinais impressionantes.
4º O amor nasceu.
Amar é ter prazer em ver, tocar, sentir por todos os sentidos, e do modo mais próximo possível, um objeto amável e que nos ama.
5º A primeira cristalização começa.
Sentimos prazer em ornar de mil perfeições uma mulher de cujo amor temos certeza; passamos em revista toda a nossa felicidade com um complacência infinita. Isso se resume em exagerar uma propriedade soberba, que acaba de nos cair do céu, que não conhecemos e cuja posse nos é assegurada.
Deixem a cabeça de um amante funcionar durante vinte e quatro horas e eis o que encontrarão.
Nas minas de sal de Salzburgo, joga-se nas profundezas abandonadas da mina um ramo de árvore desfolhado pelo inverno; dois ou três meses depois, ele é retirado coberto de cristalizações brilhantes: os menores raminhos, aqueles que não são maiores do que a pata de um chapim, são guarnecidos de uma infinidade de diamantes móveis e cintilantes; já não podemos reconhecer o ramo primitivo.
Chamo de cristalização a operação do espírito que extrai de tudo o que se apresenta a descoberta de que o objeto amado tem novas perfeições.
(...) Este fenômeno, que me permito chamar de cristalização, provém da natureza que nos ordena ter prazer e que nos envia sangue ao cérebro, do sentimento de que os prazeres aumentam com as perfeições do objeto amado, e da idéia: ela é minha.
Apesar de ser um texto datado, refletindo os costumes e comportamentos de uma época (a Europa, e, mais especificamente, a França do início do século XIX), é possível perceber o quanto as descrições e pormenores ainda são válidos e verdadeiros nos dias atuais. O tom vai da ironia fina à confissão apaixonada.
Se, em alguns momentos, Stendhal parece zombar dos amantes, é a defesa do amor que se sobressai.
Quando existe a perfeita naturalidade, a felicidade de dois indivíduos chega a se confundir. Graças à simpatia e a várias outras leis de nossa natureza, ela é simplesmente a maior felicidade que possa existir.
Não deixa de ser fácil determinar o sentido da palavra naturalidade, condição necessária da felicidade pelo amor.
Chamamos naturalidade ao que não se afasta da maneira habitual de agirmos. Não é preciso dizer que não apenas nunca devemos mentir para quem amamos, como também não devemos embelezar o mínimo que seja e alterar a pureza de traços da verdade. Pois, quando embelezamos, a atenção se ocupa em embelezar e já não responde ingenuamente, como o toque de um piano, ao sentimento que se mostra nos olhos. Logo ela se dá conta disso por certa frieza que sente, e por sua vez recorre à faceirice. Talvez seja esta a razão oculta por que não podemos amar uma mulher de espírito muito inferior. Ao seu lado podemos fingir impunemente, e como fingir é mais cômodo, por causa do hábito, entregamo-nos à falta de naturalidade. A partir daí o amor já não é amor e passa a não ser nada mais do que um negócio comum: a única diferença é que em vez de dinheiro ganhamos prazer ou vaidade, ou uma mistura dos dois. Mas é difícil deixar de sentir um pouco de desprezo por uma mulher para quem podemos representar impunemente e, por conseguinte, para abandoná-la só nos falta encontrar algo melhor. O hábito ou os juramentos podem prender, mas refiro-me à inclinação do coração, cuja tendência natural é voar para o maior prazer.
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No apêndice do livro, Stendhal fala sobre as curiosas cortes de amor, cortes que existiram na França, no século XII, presididas por mulheres que discutiam e julgavam questões de amor. As cortes seguiam as determinações de um não menos curioso Código de Amor. São, ao todo, trinta e um artigos:
I. A alegação de casamento não é desculpa legítima contra o amor.
II. Quem não sabe ocultar não sabe amar.
III. Ninguém pode entregar-se a dois amores.
IV. O amor sempre pode crescer ou diminuir.
V. Não tem sabor o que um amante toma à força do outro amante.
VI. De ordinário, o macho só ama em plena puberdade.
VII. Prescreve-se a um dos amantes, por ocasião da morte do parceiro, uma viuvez de dois anos.
VIII. Ninguém, sem uma razão mais do que suficiente, deve ser privado de seu direito em amor.
IX. Ninguém poderá amar se não for envolvido pela persuasão de amor (pela esperança de ser amado).
X. Geralmente o amor é expulso de casa pela avareza.
XI. Não convém amar aquela que teríamos vergonha de desejar em casamento.
XII. O verdadeiro amor só deseja as carícias feitas por quem ele ama.
XIII. Amor divulgado raramente dura.
XIV. O êxito fácil demais logo tira o encanto do amor: os obstáculos aumentam-lhe o valor.
XV. Todo aquele que ama empalidece à vista de quem ama.
XVI. Trememos ao ver de modo imprevisto quem amamos.
XVII. Novo amor expulsa o antigo.
XVIII. Só o mérito torna digno de amor.
XIX. O amor que se extingue logo cai e raramente se levanta.
XX. Quem ama é sempre temeroso.
XXI. Pelo verdadeiro ciúme a afeição de amor cresce continuamente.
XXII. Pela suspeita e pelo ciúme que dela deriva cresce a afeição de amor.
XXIII. Menos dorme e menos come quem é assaltado por pensamento de amor.
XXIV. Tudo o que o amante faz termina em pensar em quem ama.
XXV. O verdadeiro amor só acha bom o que sabe agradar à pessoa amada.
XXVI. O amor nada pode recusar ao amor.
XXVII. O amante não pode saciar-se do gozo de quem ama.
XXVIII. Uma débil presunção faz com que o amante suspeite de coisas sinistras na pessoa amada.
XXIX. O muito excessivo hábito dos prazeres impede o nascimento do amor.
XXX. Uma pessoa que ama está constante e ininterruptamente ocupada com a imagem do ser amado.
XXXI. Nada impede que uma mulher seja amada por dois homens, e um homem por duas mulheres.