Mais que uma experiência ou verdade fundamental, a leitura de crônicas parece antes sugerir uma sensação, ou diferentes sensações que se seguem e que, no conjunto, criam uma espécie de empatia e formam uma imagem quase nítida daquele que escreve. A cumplicidade na banalidade poética do cotidiano rende um amigo. Um dos meus melhores amigos é o Rubem Braga.
Há algum tempo, vinha seguindo uma dieta - nada rígida, é verdade - de duas crônicas por dia. Lidas, em geral, depois do almoço e antes da sesta sagrada. A ideia era deixar que a sensação provocada pela leitura homeopaticamente prescrita e digerida pudesse me acompanhar ao longo do dia. Saborear cada texto lentamente, como toda boa crônica merece. Mas na última semana, num ímpeto de gula, devorei o livro inteiro. A sensação final e cristalizada de beleza da vida real, em sua realidade mais cotidiana e prosaica - e talvez por isso mais poética -, compensou a imprudência.
Cada início de crônica é uma promessa:
No centro do dia cinzento, no meio da banal viagem, e nesse momento em que a custo equilibramos todos os motivos de agir e de cruzar os braços, de insistir e desesperar, e ficamos quietos, neutros e presos ao mais medíocre equilíbrio - foi então que aconteceu. (Visão)
E o fim pode trazer uma revelação inesperada:
Ouvi-me, pois, insensatos; ouvi-me a mim e não a essa infame e horrenda serra que a vós e a mim tanto azucrina. Vamos para a praia. E se o proprietário vier, se o banqueiro vier, se o governo vier, e perguntar com ferocidade: "estais loucos?" - nós responderemos: "Não, senhores, não estamos loucos; estamos na praia jogando peteca". E eles recuarão, pálidos e contrafeitos. (Manifesto)
Entre o início e o fim, a beleza:
Houve um momento, aquele momento em que a carne se faz alma. (Às duas horas da tarde de domingo)
E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho? (Despedida)
Deixo aqui um aperitivo:
A Palavra
(Rubem Braga)
Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento - e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven - e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído - talvez palavras de algum poeta antigo - foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
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