segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Só o Amor

Como na passagem do ano a gente não se furta à tentação de fazer pedidos e renovar desejos - e é bom que seja assim pois todo ciclo que se encerra dando início a outro inspira o anseio por transformações -, deixo aqui registrado o meu desejo para o próximo ano, e o próximo e o próximo...: Amor!
Em Problemas do Homem Contemporâneo (PHC), o professor Ricardo Galvanese deu, um dia, uma aula brilhante e inspiradora sobre o Amor - Amor como meta máxima, como ápice da vida ética, emocional e espiritual do ser humano (e embora a humanidade já esteja condenada (!), insisto em acreditar na capacidade humana de amar). Só está pronto para amar, dizia o professor, quem tem maturidade emocional e é capaz de se reconhecer a si mesmo como um ser inteiro e pleno e de reconhecer no outro o outro, com suas idiossincrasias e como um ser completo em si mesmo e não como uma projeção ilusória de nós mesmos. Também falou sobre os três tipos de Amor: a Paixão (Eros), o necessitar do outro (atração); a Amizade (Philia), o alegrar-se com o outro (regozijo); e a Caridade (Ágape), o querer o bem do outro (incondicionalidade). O Amor perfeito e verdadeiro - o Sublime Amor - seria aquele que consegue unir essas três formas de amor. Ai, ai... suspiros de esperança... (não é à toa que estou escrevendo em véspera de ano novo!)
André Comte-Sponville, no seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, considera o Amor como a maior das virtudes, aquela para a qual todas as outras tendem. Depois vou colocar algum trecho dele aqui (o capítulo sobre o Amor é um pouco longo, mas vale a pena...).
E por falar em Amor, lembrei da canção Monte Castelo, do Renato Russo, inspirada em um poema de Camões e em uma carta de São Paulo aos Coríntios:

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.

O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

É um não querer mais que bem querer.
É solitário andar por entre a gente.
É um não contentar-se de contente.
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrário a si é o mesmo amor.

Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.


segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Debaixo d'água

Debaixo d' água tudo era mais bonito
Mais azul mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água se formando como um feto
Sereno confortável amado completo
Sem chão sem teto sem contato com o ar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Debaixo d'água por encanto sem sorriso e sem pranto
Sem lamento e sem saber o quanto
Esse momento poderia durar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água ficaria para sempre
Ficaria contente
Longe de toda gente para sempre
No fundo do mar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Debaixo d'água protegido salvo fora de perigo
Aliviado sem perdão e sem pecado
Sem fome sem frio sem medo sem vontade de voltar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água tudo era mais bonito
Mais azul mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia

Agora
Agora que a agora é nunca
Agora posso recuar
Agora sinto minha tumba
Agora o peito a retumbar
Agora a última resposta
Agora quartos de hospitais
Agora abrem uma porta
Agora não se chora mais
Agora a chuva evapora
Agora ainda não choveu
Agora tenho mais memória
Agora tenho o que foi meu
Agora passa a paisagem
Agora não me despedi
Agora compro uma passagem
Agora ainda estou daqui
Agora sinto muita sede
Agora já é madrugada
Agora diante da parede
Agora falta uma palavra
Agora o vento no cabelo
Agora toda minha roupa
Agora volta pro novelo
Agora a língua em minha boca
Agora meu avô já vive
Agora meu filho nasceu
Agora o filho que não tive
Agora a criança sou eu
Agora sinto um gosto doce
Agora vejo a cor azul
Agora a mão de quem me trouxe
Agora é só meu corpo nu
Agora eu nasço lá de fora
Agora minha mãe é o ar
Agora eu vivo na barriga
Agora eu brigo pra voltar
Agora
Agora

(Arnaldo Antunes e Titãs, na voz de Maria Bethânia in 'Mar de Sophia')

domingo, 23 de dezembro de 2007

O vazio da xícara (porque para Ser é preciso deixar de ser...)

É quando a roda pára que vem a náusea
(Poema de Rafaelle Donzalisky)

Eu queimo as revistas, e mesmo assim me perseguem os anúncios; produtos pra queimar a gordurinha que não vejo na modelo que o anuncia,
Eu prefiro a ferida a tal remédio!
Prefiro a dor ao tédio,
A engolir a seco o sapos cururus e as gias do brejo do vizinho , sim ,
lá tem lugar de sobra. No meu, as vacas pastam.
E sempre sobram sapos que não são meus pra empurrar goela abaixo.
Prefiro a tese, oras, a contradição, pois até a pluma leve às vezes toca ao chão.
Que a terra se exploda em cacos! [mesmo assim haverá vida nos estilhaços].
Quero encontrar vestígios de vida num copo quebrado com o meu grito de euforia ou desabafo!Quero ir até o fundo!
Beber a última gota da sopa que alimenta o vagabundo
Quero ir até o fundo!
E ver minha cara nas poças da avenida.
Quero ir até o fundo!
Mas no fundo, não há fundo se a xícara está vazia!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O peso e a leveza

Na última publicação, mencionei A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. É um romance que narra a existência de quatro pessoas tendo como pano de fundo a invasão russa da antiga Tcheco-Eslováquia e a dureza do regime comunista lá imposto. Pensei mais sobre este livro, porque ele começa falando justamente de Nietzsche para fundamentar a oposição entre leveza e peso que permeia todo o romance. Eis o início:

O eterno retorno é uma idéia misteriosa, e Nietzsche, com essa idéia, colocou muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?
O mito do eterno retorno nos diz, por negação, que a vida vai desaparecer de uma vez por todas, e que não mais voltará, é semelhante a uma sombra, que ela é sem peso, que está morta desde hoje, e que, por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor, não têm o menor sentido. Essa vida não deve ser considerada mais importante do que uma guerra entre dois reinos africanos do século XIV, que não alterou em nada a face do mundo, embora trezentos mil negros tenham encontrado nela a morte através de indescritíveis suplícios.
Será que essa guerra entre dois reinos africanos do século XIV se modifica pelo fato de se repetir um número incalculável de vezes no eterno retorno?
(...)
Se cada segundo de nossa vida deve se repetir um número infinito de vezes, estamos pregados na eternidade como Cristo na cruz. Que idéia atroz! No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma insustentável leveza. Isso é o que fazia com Nietzsche dissesse que a idéia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos.
Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, nossas vidas, sobre esse pano de fundo, podem aparecer em toda a sua esplêndida leveza.
Mas, na verdade, será atroz o peso e bela a leveza?
O mais pesado fardo nos amarga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira.
Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.
Então, o que escolher? O peso ou a leveza?
Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. Segundo ele, o universo está dividido em duplas de contrários: a luz e a obscuridade, o grosso e o fino, o quente e o frio, o ser e o não-ser. Ele considerava que um dos pólos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser), o outro, negativo. Essa divisão em pólos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Menos em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza?
Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado negativo. Teria ou não razão: Essa é a questão. Uma coisa é certa. A contradição pesado-leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Produtos e produtos

Último trabalho do ano: discorrer sobre o tema "Sou um produto da indústria cultural mas não sou um produto da indústria cultural". A disciplina é Teorias da Comunicação. Não é Filosofia, mas é filosofia...

Indústria cultural é o sistema produtivo presente em todas as sociedades industrializadas modernas que, seguindo o modelo industrial de produção, transforma os elementos da cultura em produtos, procurando gerar produção em larga escala para o maior número de pessoas possível. Caracteriza-se, portanto, pela massificação e padronização dos bens culturais (dando origem, assim, à cultura de massa) e pela criação e, de certa forma, imposição de valores que estimulam o consumo. O consumismo, por sua vez, torna-se um valor em si, que passa a guiar e dar um sentido à vida das pessoas: a posse como valor existencial máximo, em que o ser é substituído pelo ter.
A indústria cultural, assim definida, embora tenha sido impulsionada pela Revolução Industrial no século XIX, consolidou-se no século XX com o surgimento (de novos) e fortalecimento (dos já existentes) meios de comunicação de massa. Atualmente, vivemos inseridos no sistema capitalista que impõe um modelo de globalização neoliberal, e mesmo os países considerados industrializados porém não capitalistas seguem este modelo (ainda que somente por via de efeitos indiretos). Portanto, o universo da cultura acaba sendo atingido, ou melhor, está também inserido nesta esfera globalizada.
Se pensarmos na divisão de Marx entre estrutura e superestrutura, podemos dizer que somos diretamente afetados pela indústria cultural em ambas as instâncias da organização social. Neste sentido, podemos afirmar que somos um produto direto da indústria cultural. No âmbito da produção, vivendo em uma sociedade industrializada, é praticamente impossível não fazer parte ao menos do processo final da industrialização, que é o consumo. Quando compramos um jornal, lemos um livro, ouvimos um cd ou vamos ao cinema, estamos participando e ativando os dispositivos da indústria cultual, mesmo sem se dar conta disto. Por outro lado, no âmbito dos produtos (considerando-se, principalmente, os conteúdos culturais), acabamos absorvendo e vivenciando valores que, por meio da cultura, tornam-se “naturais” e, portanto, perfeitamente aceitáveis. É neste âmbito que a atuação da indústria cultural, através da ideologia, realiza-se de modo mais intenso e mais perigoso. Embora seja um conjunto de abstrações – ou exatamente por isso –, a ideologia dominante gerada pela indústria cultual cria um modo de viver e pensar a realidade que passa a ser aceito pela grande maioria das pessoas de forma passiva e sem questionamento. É como a mão aceitando a luva que lhe dão. O problema maior é que, hoje, a luva é do tamanho do mundo, e já somos vestidos no momento em que nascemos. Como viver fora dos valores da indústria cultural?
No entanto, a constatação e a consciência crítica desta realidade social e existencial que vivemos podem transformar-se em um olhar que, mesmo encerrado no sistema imposto pela indústria cultural, abra perspectivas de questionamento e atuação. É neste sentido que podemos dizer que não somos um produto da indústria cultural. Na medida em que temos o poder de escolha e exercemos conscientemente este poder, deixamos de ser simples marionetes nas mãos da grande abstração chamada sistema para nos tornar seres responsáveis pela nossa existência e por nossas escolhas, ainda que inseridas no contexto maior da indústria cultural (isto significa que talvez nossas opções estejam limitadas a escolher entre um produto e outro). Conhecer a realidade e o funcionamento desta indústria e buscar novas formas alternativas de criar e agir dentro dela, ou apesar dela, são os modos possíveis de não vivermos apenas como mais um de seus produtos.

***

Lendo A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, e 1984, de George Orwell, percebi que talvez as coisas ainda pudessem ser bem piores... e que as discussões com o JB (João Batista, o professor-filósofo das Teorias da Comunicação) ganharam novos sentidos...