Bloom procurava o insólito que não
sendo acontecimento mudo ou ruído, sendo
sítio, obriga a caminhar. Se o que procuro
chegasse à minha cadeira,
para que me serviriam os sapatos? Mas é já
um conhecimento clássico: acontecimentos novos
existem em espaços novos, e não em antigos.
Não deixes que a tua cadeira confortável prejudique
a tua curiosidade.
O tema da redação era obsolescência programada, a redução intencional e planejada da vida útil de produtos com o intuito de estimular e aumentar o consumo. O aluno, apaixonado por Nietzsche e Adorno, parceiro em questionamentos filosóficos e planos para mudar o mundo, teve uma súbita "inspiração concretista":
banho de chuva, alma lavada.
o corpo secou.
a alma, não.
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
O tempo só anda de ida.
A gente nasce cresce amadurece envelhece e morre.
Pra não morrer tem que amarrar o tempo no poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o tempo no poste.
(Manoel de Barros)
quinta-feira, 24 de julho de 2014
"Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver." (Ariano Suassuna)
"Fazer da vida uma obra de arte não consiste em introduzir arte na própria existência, ir ao teatro, visitar museus ou consumir literatura. Muito menos se pode entender como a imitação de um modelo: isso seria um equívoco. Trata-se de dedicar tempo e atenção ao desenvolvimento de si mesmo - ser amante da mudança e da transformação, no momento em que ocorre, não se deixar levar pela impaciência que nos faria aceitar o que alguns artistas ou pensadores oferecem já pronto - até encontrar o pincel apropriado, a tela e as cores próprias e adequadas, a fim de chegar a ser um mestre em nossa própria arte de viver.
(...) A vida filosófica é uma aventura, uma experiência que leva às suas próprias conclusões, isto é, um experimento radical do qual não se podem prever os resultados. É uma viagem sem destino planejado, na qual nada se busca e algo se encontra. Aqui, não existe a vida de um lado e a filosofia de outro. Como diz Nietzsche, trata-se de fazer de um acontecimento da vida um aforismo do pensamento, e de uma análise do pensamento uma nova perspectiva de vida."
(A potência segundo Nietzsche, Maite Larrauri e Max)
Arte de rua ou vandalismo? O artista britânico Banksy eleva a contestação e o grafite aos limites da subversão e do sarcasmo. Das ruas para as telas, Banksy, que, apesar da fama e reconhecimento, ainda mantém sua identidade um mistério, teve mais uma sacada genial, colocando em cheque a própria arte de rua. Exit through the gift shop retrata a cena alternativa, mas também questiona a própria natureza da arte, a comercialização e o surgimento de um suposto artista que alcança o status de pop star da noite para o dia. O documentário conta a história do francês radicado em Los Angeles Thierry Guetta, um documentarista amador que, após anos filmando alguns dos mais reconhecidos artistas de ruas, torna-se ele mesmo um artista, e o tema do filme de Banksy.
Para alguns, o documentário não passa de uma farsa, mais uma das criações sarcásticas de Banksy. Seja a história verdadeira ou falsa, a crítica e o humor estão tão presentes quantos em seus melhores trabalhos de rua.
Penny: Então, como você está?
Sheldon: Bem, minha existência é um contínuo, então estou como estou em cada ponto do referido período de tempo.
Leonard: Isso não quer dizer que se um relacionamento carnal se desenvolvesse eu não participaria. Ainda que fosse breve.
Sheldon: Você acha que essa possibilidade seria ajudada ou minada se ela descobrisse seu shampoo de Luke Skywalker que não arde nos olhos na banheira?
Leonard: É do Darth Vader. O Luke Skywalker é o condicionador.
Sheldon: Revisei o quadro e, pelo visto, você estava certo.
Raj: Então, você estava errado.
Sheldon: Eu não disse isso.
Raj: Essa é a única inferência lógica.
Sheldon: Ainda assim, não foi o que eu disse.
Sheldon: Devo dizer que desde que você começou a ter relações sexuais regularmente, sua mente perdeu o sentido aguçado. Você deveria refletir a esse respeito.
Leonard: Com licença, mas Einstein teve uma vida sexual bastante agitada.
Sheldon: Sim, e ele jamais unificou a gravidade com as demais forças. Se não tivesse sido tão assanhado, todos teríamos máquinas do tempo agora.
Leonard: Leslie, eu gostaria de propor um experimento... Estava pensando em uma exploração biossocial com sobreposição neuroquímica.
Leslie: Espere, você está me chamando para sair?
Leonard: Eu caracterizaria como uma modificação de nosso paradigma "colegas barra amigos" com a adição de um componente tipo encontro, mas não precisamos discutir a terminologia.
Penny: Sabe, eu sempre digo que quando uma porta se fecha, outra se abre.
Sheldon: Não, não abre. A não ser que as duas portas estejam conectadas por interruptores ou haja sensores de movimento envolvidos. Ou se a primeira porta que se fechou criou uma mudança na pressão do ar que afeta a segunda porta.
Junte uma de suas séries de TV favoritas e um de seus assuntos favoritos em um único livro e você terá diversão garantida. Em The Big Bang Theory e a filosofia, as situações vividas por Sheldon, Leonard e companhia, são exploradas a partir de grandes questionamentos filosóficos.
Para quem não conhece ou não é familiarizado com o mundo das séries, The Big Band Theory acompanha a vida de quatro acadêmicos assumidamente nerds - o que inclui devoção por quadrinhos, super heróis, Star Wars, Jornadas nas Estrelas, jogos de computador e tecnologia, entre outros. Suas habilidades intelectuais sempre esbarram em uma incapacidade de lidar ou mesmo de compreender situações sociais da vida cotidiana, e nisso reside grande parte da graça da série. O drama e as alegrias de ser nerd pipocando com piadas inteligentes em situações banais a todo instante.
Já o livro consegue colocar uma pitada de graça na filosofia, discutindo questões sérias levantadas por filósofos ao longo dos tempos a partir das aventuras e desventuras dos quase heróis de Pasadena. O propósito da vida, a virtude, o mal, cientificismo e as limitações da racionalidade, linguagem e realidade objetiva, são alguns dos temas debatidos por acadêmicos e estudiosos que também não escondem suas preferências nerds.
Talvez quem não acompanhe a série não veja muita graça no livro. Mas os fãs de The Big Band Theory vão gostar de conhecer melhor seus personagens favoritos a partir de uma perspectiva filosófica.
"Um desses diálogos é particularmente relevante para o debate a respeito do cientificismo. Em The Work Song Nanocluster [A nanopartícula da canção de trabalho], Sheldon voluntaria-se para ajudar Penny em sua nova empreitada: tornar a empresa 'Flores da Penny' o mais lucrativa possível. Um pouco surpresa, Penny pergunta: 'E você sabe sobre essas coisas?' Sheldon, com um pouco de escárnio, responde: 'Penny, eu sou físico. Tenho um conhecimento abrangente sobre o universo inteiro e tudo o que ele contém.' Um pouco irritada, Penny faz uma pergunta para testar a hipótese de Sheldon: 'Quem é Radiohead?' Dessa vez, hesitante, Sheldon declara: 'Tenho um conhecimento abrangente de todas as coisas importantes do universo.' Esse é um exemplo quase perfeito de falácia do cientificismo: os físicos podem algum dia obter sucesso ao chegar a uma teoria de tudo, mas 'tudo' tem um significado muito específico e limitado aqui, referindo-se aos fundamentos básicos do universo. Não é verdade, seja do ponto de vista epistemológico ou do ontológico, que alguém possa, então, simplesmente aplicar o método cartesiano para trabalhar sua ascensão desde as supercordas até a importância cultural da banda Radiohead. Além disso, Sheldon oferece um juízo de valor não tão implícito aqui. No entanto, seria racional perguntar por que a física teórica é o único modo de discurso importante? Ou mais diretamente, como Sheldon poderia provar ou justificar sua posição dentro da ciência sozinha? Juízos de valor, mais uma vez segundo David Hume, parecem distintos do discurso científico exatamente porque o que é ou o que pode ser feito não é um guia certeiro para o que deve ser feito."
Se não fosse verdade, seria realmente difícil acreditar em uma história como essa. E se não tivesse ganho o Oscar deste ano de melhor documentário, Searching for Sugar Man poderia facilmente concorrer entre os indicados a melhor roteiro.
Sixto Rodriguez tocava em bares e ruas de Detroit quando foi descoberto por produtores, que o comparavam a Bob Dylan, em talento e genialidade. Mas seus dois álbuns, Cold Facts (1970) e Coming from Reality (1971), foram um verdadeiro fracasso e o músico foi dispensado por sua gravadora. Rodriguez desapareceu completamente da cena musical norteamericana da mesma forma que surgiu: em meio a neblina e mistério.
De forma ainda mais misteriosa, seu álbum Cold Facts chega à África do Sul e se espalha como um vírus musical revolucionário. Suas músicas tornam-se hino na luta contra o Apartheid, seus discos vendem milhões de cópias e Rodriguez atinge uma popularidade comparável à dos Beatles e de Elvis.
Em meio ao imenso sucesso, cresce o mito em torno do músico. Histórias de sua vida e de sua morte ganhavam contornos lendários. Alguns diziam que Rodriguez teria se matado atando fogo no próprio corpo durante uma apresentação, outros acreditavam que ele se suicidou com um tiro na cabeça após a má recepção do público em um show.
O mistério atrai dois admiradores e especialistas na obra de Rodriguez em busca de informações sobre o autor de Sugar Man, um dos maiores sucessos do músico. A trajetória desta busca e seu desdobramento surpreendente são o impulso do documentário (qualquer palavra a mais estragaria a grande surpresa do filme). Uma história absolutamente fascinante sobre um homem absolutamente fascinante. Redundância justificada, depois que se conhece Sixto Rodriguez.
"Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem." (Paulo Freire)
"O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens, não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.
Exatamente porque não podemos aceitar a concepção mecânica da consciência, que a vê como algo vazio a ser enchido, um dos fundamentos implícitos da visão 'bancária' criticada, é que não podemos aceitar, também, que a ação libertadora se sirva das mesmas armas da dominação, isto é, da propaganda, dos slogans, dos 'depósitos'.
A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres 'vazios' a quem o mundo 'encha' de conteúdos; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como 'corpos conscientes' e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo."
Um guarda-chuva azul se apaixona por uma guarda-chuva vermelha em uma noite de chuva forte. É essa basicamente a história do novo curta da Pixar, O guarda-chuva azul, lançado e exibido no cinema junto com Universidade Monstros (que, por sinal, também vale muito a pena ver).
Apesar da simplicidade do roteiro - ou justamente por causa dela - o curta atinge a perfeição em imagens e emoção. Muitos "ouns" garantidos.
Li um texto no blog da MTV americana que trazia no título "The cutest thing you'll see today". Realmente, O guarda-chuva azul é uma das coisas mais fofas para se ver em matéria de cinema.
Escrever é como correr. Talvez a comparação seja disparatada, mas para o escritor e corredor japonês Haruki Murakami resume sua trajetória e o sentido de sua existência.
Autor consagrado, ganhador de diversos prêmios e sempre possível candidato ao Nobel de literatura, Murakami começou a correr quando começou a escrever, e as duas atividades nasceram de uma firme decisão. Simples assim. Um dia, vendo um jogo de basebol, percebeu que poderia escrever. E assim o fez.
A vontade de correr surgiu da necessidade de modificar todo o seu estilo de vida - antes de virar romancista, Murakami gerenciava seu bar de jazz em Tóquio -, e ficar mais saudável para conseguir se tornar um melhor escritor. Ideia pouco usual, considerando-se a imagem estereotipada do artista boêmio de vida desregrada. Talento de escritor cultivado, hábito de corredor criado, não demorou muito para Murakami tomar gosto por maratonas, passando a correr pelo menos uma por ano. Do que eu falo quando eu falo de corrida não é uma manual de corrida, nem um livro do tipo "corra e seja feliz". É o relato pessoal de um escritor que encontrou no ato de correr não apenas uma metáfora e um ponto de apoio para sua arte, mas também um caminho de autoconhecimento.
"A maior parte do que sei sobre escrever, aprendi correndo todos os dias. São lições práticas, físicas. Até onde posso me forçar? Quanto descanso é apropriado - e quanto é demais? Até onde posso levar alguma coisa e ainda assim mantê-la decente e consistente? Quando uma coisa se torna tacanha e inflexível? Quanta consciência do mundo exterior devo ter, e quanto devo me concentrar em meu próprio mundo interior? Em que medida devo ter confiança em minhas capacidades, e quando devo começar a duvidar de mim mesmo? Sei que se eu não tivesse me tornado um corredor de longa distância quando me tornei romancista, minha obra teria sido vastamente diferente. Quão diferente? Difícil dizer. Mas alguma coisa definitivamente teria sido diferente.
Em todo caso, fico feliz por não ter parado de correr em todos esses anos. O motivo é o seguinte: gosto dos romances que escrevi. E fico ansioso para descobrir que tipo de romance vou produzir em seguida. Uma vez que sou um escritor limitado - uma pessoa imperfeita vivendo uma vida limitada, imperfeita -, o fato de que ainda consiga me sentir desse jeito é uma verdadeira realização. Chamar de milagre talvez seja exagero, mas realmente me sinto desse jeito. E se correr todo dia me ajuda a realizar isso, então sou muito grato por correr.
As pessoas às vezes zombam de quem corre todo dia, alegando que é uma tentativa desesperada de viver mais. Mas não acho que esse seja o motivo pelo qual a maioria corre. A maioria dos corredores corre não porque queira viver mais, mas porque quer viver a vida ao máximo. Se você quer desfrutar os anos, é muito melhor vivê-los com objetivos claros e plenamente vivo do que numa bruma, e acredito que correr ajude a fazer isso. Forçar a si mesmo ao máximo dentro de seus limites individuais: essa é a essência de correr, e uma metáfora aplicável à vida - e, para mim, ao ato de escrever, também. Acredito que muitos corredores concordariam."
*
Para mais Murakami, fica a indicação do instigante romance Kafka à beira-mar (Aqui, em edição portuguesa, mas o livro já foi publicado no Brasil pela Alfaguara/Objetiva):
Você acaba de morrer. Agora deve escolher o momento mais importante de toda a sua vida. Uma equipe irá produzir e filmar o seu momento e essa será a única lembrança que você vai levar por toda a eternidade. Esse é o ponto de partida de Depois da Vida, filme do diretor japonês Hirokazu Kore-eda.
O cenário é uma velha hospedaria e cada pessoa tem a ajuda de uma espécie de guia espiritual. Uma semana entre decidir o momento e terminar o filme, ou acabam presos nesse limbo.
A difícil questão da escolha e o trabalho com a memória revisitada e reconstruída despertam reflexões sobre a vida e a importância de encontrar aquele momento de perfeição dentro de si mesmo ao qual voltar. Bolinhos de arroz no bambuzal depois de um terremoto, a brisa em um passeio de bonde, ruído de sinos na bolsa de uma pessoa especial se aproximando... a vida sintetizada em um único instante de felicidade. O significado e a beleza da existência explorados de maneira poética. Uma bela visão da morte, uma bela visão da vida.
Conselhos de minha mãe foram apenas silêncios. Suas falas tinham o sotaque de nuvem.
- A vida é que é a mais contagiosa - dizia.
Passou-se o tempo e eu saí da terra nossa, encorajado pelo padre Muhando. Na cidade, eu tinha acesso à carteirinha das aulas. A escola foi para mim como um barco: me dava acesso a outros mundos. Contudo, aquele ensinamento não me totalizava. Ao contrário, mais eu aprendia, mais eu sufocava. Ainda me demorei por anos, ganhando saberes precisos e preciosos.
Na viagem de regresso não seria já eu que voltava. Seria um quem não sei, sem minha infância. Culpa de nada. Só isto: sou árvore nascida em margem. Mais lá, no adiante, sou canoa, a fugir pela corrente; mais próximo sou madeira incapaz de escapar do fogo.
Minha mãe partira na curva da chuva, saindo a habitar a estrela de nenhumas pontas. A partir de então, a vida já não lhe comparecia: ela apanhara o último desencontrão. Ainda lembrei suas palavras amadurecendo uma esperança para mim quando eu de tudo descria:
- Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é assim: está sempre toda por viver.
Aqueles momentos junto ao meu velhote me puxavam para um incerto sono, quem sabe isso que chamam de ternura fosse aquele amaciamento. Esses breves tempos foram, hoje eu sei, a minha única casa. No estuário onde meu velho deitara seu existir eu inventava minha nascente.
Tudo isso eu lembrava quando cheguei à praia de Inhamudzi onde meu velho se exilara. O lugar não era distante e eu viajara mais lembranças que quilômetros. Desta vez, eu vinha quase sem mim, parecia um desqualquerficado. Meus saberes de cidade serviam para quê? Aqueles caminhos tinham serviços que não eram os mesmos das ruas urbanas: pareciam feitos apenas para passarem sonhos e poentes.
- No dia em que deixar de tomar banho.
Era o modo de nomear o dia de sua morte. Falava tudo por enfeite. Pois, nesse dia, dizia Hortênsia, quando estivesse toda por baixo das pálpebras, viessem lhe tirar posses e bens, esvaziassem-lhe a casa como vazia seria sua lembrança. A sua retirada do mundo dos viventes passou a ocupá-la por demasia. Em tudo e nada ela se despedia. Esbanjava adeuses. Saía à casa de banho, ia à cozinha: não se retirava sem as devidas vênias. Encenando o definitivo.
Quando nascemos sabemos tudo, mas não lembramos nada. Depois, crescemos, vamos ganhando lembrança e encolhendo sabedoria.
O tamarindo mais sua sombra: aquilo era feito para abraçar saudades. Minha infância fazia ninho nessa árvore. Em minhas tardes de menino, eu subia ao último ramo como se em ombro de gigante e ficava cego para assuntos terrenos. Contemplava era o que no céu se cultiva: plantação de nuvem, rabisco de pássaro. E via os flamingos, setas rapidando-se furtivas pelos céus. Meu pai sentava em baixo, na curva das raízes, e apontava os pássaros:
- Olha, lá vai mais outro!
- Seu pai não tem comportamento.
O velho Sulplício desvalorizava: sua mãe é como o grilo - tem alergia a silêncios.
E se enganava ao pensar que ele nada fazia. Porque ele, consoante anunciava, andava azafamado.
- Ando aprender a língua dos pássaros.
- Sabe o que dizia sua mãe? Que o melhor lugar para se chorar era a varanda.
E tinha sentido: a varanda. À frente estava o mundo e seus infinitos; atrás estava a casa, o primeiro abrigo. Com um gesto largo, meu velho anunciava o final daquela conversa.